Objeto não identificado
“I MISS MY PRE-INTERNET BRAIN”, sinalizava, em caixa alta, um pôster do ano de 2012, parte de uma série de trabalhos do artista, pesquisador e escritor canadense Douglas Coupland. “Eu sinto saudades do meu cérebro de antes da internet” ainda parece, dez anos depois, ressoar como uma alegoria pertinente da vida contemporânea, uma vez que atravessamos, individual e coletivamente, um brutal processo de reformulação de nosso aparato cognitivo.
À medida em que o mundo passa a se configurar como uma avalanche de influxos 24 horas por dia, 7 dias por semana, vivenciamos uma vertigem: somos incapazes de elaborar tal quantidade de estímulos. Nos vemos, assim, em uma situação dual, imersos em uma hiperatividade, conectados, mas simultaneamente atravessados por uma passividade, como se as nossas artérias psíquicas e cognitivas estivessem sobrecarregadas, bloqueando a capacidade de lidarmos com os desafios do presente à altura de suas complexidades.
A dualidade prossegue quando notamos que estamos cercados por uma nitidez excessiva no trato mais trivial do cotidiano - o regime das informações, das telas, das redes, é aquele que endereça a todo momento uma hiper nitidez. Para que o fluxo não seja interrompido, a opacidade e a dúvida não são bem-vindas. Entretanto, esse mesmo regime da transparência não nos faz perceber mais ou melhor o mundo, mas, ao contrário, está antes relacionado a um embotamento do olhar e a uma espécie de embaralhamento de nossas capacidades cognitivas.
Se esse estado de ultra-definição de um mundo saturado por estímulos de toda sorte tem levado a uma atrofia dos sentidos e um achatamento da multiplicidade da experiência, como podemos cultivar um território para os objetos ainda não identificados? Como afirmar a importância da opacidade, da interrupção, da estranheza, no lugar da transparência, do automatismo, do familiar? Essas são especulações evocadas pelas obras reunidas na presente exposição.
Vivemos em uma época na qual nos distanciamos da realidade sensível, na medida em que habitamos considerável parte do tempo zonas digitais cujas telas, sempre lisas e limpas, simulam uma temporalidade não humana para a qual as marcas do tempo, as imperfeições, nunca chegam. Essa época permeada por telas e marcada pela diluição da dimensão corpórea da relação com o mundo está evocada em diferentes trabalhos aqui presentes. “Prompt de Comando” (2019), de Vitória Cribb, apresenta um tortuoso amalgama entre linguagem, corpo e máquina. O trabalho de Cribb encontra par em uma obra realizada quarenta anos antes. Em “Sem título” (1977), de Sonia Andrade, escutamos 196 vezes a voz da artista repetir, como uma espécie de mantra, a frase “desligue a televisão”. O vídeo de Andrade, pioneira da vídeo-arte no Brasil, traça uma relação entre corpo e imagem, ao mesmo tempo em que questiona a capacidade que os televisores tinham e ainda tem de “seduzir, informar, distorcer e manipular”.
Com abordagens cáusticas, Gustavo Torres e Marilá Dardot apresentam alusões a diferentes situações provocadas pela interação virtual. No vídeo de Torres vemos diferentes pessoas dormindo diante da câmera. As cenas são provenientes de chats de conversa nas quais os usuários pegaram no sono involuntariamente. O regime 24/7 é aquele das pálpebras sempre abertas no qual testemunhamos a degradação do sono. Aqueles que dormem no vídeo de Torres não simplesmente pegaram no sono, mas antes desligaram, como máquinas cujas baterias zeraram. Nos desenhos de Dardot comparecem dois elementos centrais de sua produção, a escrita e o tempo. A artista anota frases ditas em reuniões via Zoom para, em seguida, deslocá-las para desenhos feitos sob papel quadriculado, que remete a pixels. O que chama atenção é a discrepância entre a maximização do tempo relacionado à praticidade do Zoom e a temporalidade dilatada, atenta, necessária para a criação desses desenhos que instauram uma espécie de gesto meditativo – nas antípodas da dispersão provocada pelas interações virtuais. Em “Acho que caí”, Dardot traduz visualmente a frequência de uma voz que, trôpega e distante, narra a sua queda conectiva.
Queda que parece uma condição iminente do nosso presente. Os colapsos psíquicos se espraiam por todos os cantos. Como assumir a queda, a vulnerabilidade, em um mundo tomado pela demanda por desempenho, produtividade, imagens que reflitam sucesso e bem-estar? A pintura “A corte” (2022), de Victor Mattina, alude a zumbificação de nossas existências, nas quais, mesmo em meio ao colapso, seguimos forjando o teatro da normalidade. O seu banquete dos mortos alude a essa farsa.
Enquanto “Trabalho super fino” (2022), de Rafael Alonso, evoca o glitch de um monitor já cansado de trabalhar, interrompendo seu funcionamento normal, “Trabalhe com o que você ama, e então trabalhe todo tempo de sua vida” (2019/2022), de Érica Storer, apresenta uma série de gifs nos quais vemos cenas de fúria em ambientes de trabalho. A precarização do trabalho e os diversos distúrbios psíquicos daí derivados ganham aqui uma tradução bem-humorada, como se talvez ainda pudéssemos rir em meio às ruínas.
Se concordamos que um dos efeitos colaterais do mundo 24/7 e de sua inevitável algoritimização da existência é a perda de um estado de atenção apurado em relação a tudo o que nos cerca e, mais, se concordamos que os intervalos de solitude se esvaem a cada dia e a dinâmica da hiperexposição das redes faz refluir aquilo que é da ordem do incógnito, do insoldável, reunimos aqui trabalhos que afirmam a chance de uma reserva de atenção, de poesia e de enigma, dentro desta desconcertante conjuntura. A cachoeira noturna de Luiza Baldan surge como puro índice de mistério. Os desenhos fugidios e delicados de Arorá pedem que nos aproximemos para que enxerguemos suas paisagens úmidas.
A topologia acidentada presente em “Leito gráfico” (2014), de Maria Laet, por sua vez, apresenta a conhecida força poética da artista – aquela própria de quem sabe escrever em diálogo fino com a natureza, prescindindo da literalidade da linguagem humana. Linguagem literal, própria do universo da informação, que Cristiano Lenhardt vela em “Nossa voz”. Sai de cena a funcionalidade objetiva da escrita jornalística em favor de uma caligrafia orgânica de formas e cores que parecem flutuar. Flutuam também, delicadíssimos, os pontos coloridos que formam uma espécie de cidade suspensa em “Construtivo (paninho)” (2021), de João Modé. Também é da ordem do índice que requer um olhar cuidadoso “Geração espontânea” (2022), de Daniel Frota. Aqui, traças formam um desenho em um dos cantos da galeria. Já “Desenho motriz” (2021) de Débora Bolsoni subverte a iconografia da contagem do tempo em favor de uma visualidade poética que desfaz a cronologia dos relógios. Como objetos não identificados, são todos trabalhos que buscam instaurar outros sistemas semânticos de leituras do mundo.
São diversas as obras aqui reunidas nas quais comparecem a forma de cérebros, em diferentes apresentações, suportes e materiais. Ainda que não intencional, tal reincidência é um tanto reveladora de um aspecto importante da especulação que aqui propomos. Os sinais do colapso vêm de diferentes formas, enquanto os corpos adoecem, a exaustão prevalece e o caos cognitivo se espraia de forma evidente. Quando reiteramos as consequências de um tempo no qual vivemos rodeados por telas, não se trata de pensar a tela, mas sim o que a interação com esta produz. Não restam dúvidas de que as horas online estão alterando profundamente nossas mentes e que nossas subjetividades parecem espelhar mais e mais a lógica dos algoritmos. A presença das obras de Pedro França, Mayana Redin e Frederico Filippi alude, cada uma a sua maneira, a este universo.
O estado de caos cognitivo se dá em um contexto de dissociação com o corpo. Testemunhamos a era do corpo-digital-zumbi, para lembrar da expressão do filósofo italiano Franco “Bifo” Berardi. O trabalho de Eleonora Fabião, no qual somos chamados a nos agachar para ler, em diferentes pontos da galeria, as seguintes frases - só mesmo colocar a cabeça no chão e ficar / só mesmo colocar as mãos no chão e ficar / só mesmo colocar o coração e o estômago no chão e ficar – caminha nas antípodas de uma experiência atual que recalca o corpo e que desconhece a pausa.
Ocupando o centro da galeria, a instalação de Jonas Arrabal recolhe e reconfigura vestígios naturais que, amalgamados a elementos como o ferro e o aço, nos lembram que o oceano da hecatombe psíquica é também um oceano artificial. O cruzamento de natureza e cultura é o mote de “Humanos, inumanos, orgânicos e industriais” (2022). O encontro entre máquina, natureza e linguagem se vê, também, em “The unwritten script of an unspoken speech” (2015-2022), de Romain Dumesnil. Em “Arranjo (terceira formação)” (2019), de Tadáskía, vemos nascer galhos da parte de trás da sua cabeça, como se fosse possível dar um outro destino, mais fértil e vital, para os rumos aparentemente desastrosos de nosso tempo. Já “Dupla exposição #11” (2022), de Lais Myrrha, desfaz a objetividade típica do meio fotográfico em nome de uma sobreposição de imagens que faz com que Brasília, cidade cuja imagem é sólida em nossa memória, ganhe outras feições. As formas orgânicas de uma escultura de Maria Martins infiltram-se como um corpo estranho, da ordem do inconsciente – tal como um objeto não identificado? – em meio à frieza racional do concreto moderno.
“Laje #14 (Feed)”, de Matheus Rocha Pitta, traz a palavra que define os ambientes das redes sociais acima da imagem alaranjada, captada por alta tecnologia, do núcleo do buraco negro. Sobre essa relação que pensa a perversão presente na dinâmica das redes sociais, o artista afirmou: “Há uma mudança em curso agora tão terrível quanto o buraco negro: a informação se apresenta como um valor tão vital quanto o alimento. Não è à toa que esse mesmo fluxo de informação se chama FEED, uma alimentação sem pausa nem descanso, onde somos convocados (através dos dispositivos de liberdade de expressão e narcisismo) a fornecer conteúdo para uma máquina, a alimentar uma máquina que corrói todo e qualquer valor que lhe seja antagônico.”
A exposição termina com uma sala dedicada ao trabalho de Brígida Baltar, na qual vemos a projeção do vídeo “Sem escuridão”. Ao longo de dez minutos passeamos em um barco no rio Sumida, em Tóquio. Sob o lusco fusco que sinaliza o fim do dia, a viagem segue sob um céu azul escuro e com o testemunho constante de luzes artificiais que se acendem nas suas margens. Como é característico dos vídeos da artista, não existem aqui gestos largos, mas tão somente o registro seco da travessia, com uma câmera parada, uma trilha sonora sutil e a presença de um texto que pontua a narrativa: “(...) As luzes começam a aparecer à tarde no rio Sumida / logo as sombras terão contornos diversos e indefinidos / desaparecem os becos sombrios, as ruas vulneráveis / que assustam e abrigam fantasmas / não há brechas, nem espaços invisíveis / não há mais escuridão / uma vez li que o nascer e o pôr-do-sol / não orquestram mais o tempo na cidade / sem impulso, a melatonina agora transborda em fármacos / o sono adia o tempo / inventa uma pausa / os ruídos se confundem / os músculos cedem / a respiração é regular e lenta / não se pensa sobre o momento exato / em que magicamente perdem-se os sentidos / um pouco depois, algum brilho nos torna insones / (...) / mas eu ficaria novamente em uma noite plena / olhando estrelas que já não existam / ou numa mata noturna / fazendo os olhos se acostumarem para ver / ao som da sinfonia estridente dos insetos / é para Rudá que as guaranis cantam ao anoitecer / as lanternas, os luminosos, os fogos de artifício / os postes e faróis na cidade / nos entorpecem demasiadamente / não há mais escuridão”.
A capital japonesa é conhecida pela intensa luminosidade artificial, e será em um diálogo crítico com os significados desse elogio ao clarão contínuo que faz da noite dia que o trabalho irá se dar. Aqui, texto e imagem possuem o mesmo peso e importância. A viagem por um dos muitos rios que cortam Tóquio flagra a um só tempo o fim do dia e o início de um outro tipo de dia, já que a noite jamais chega. Pouco a pouco nos postes, no interior dos prédios e em suas fachadas, na forma de anúncios de grande escala, se acendem dezenas e dezenas de pontos de luz que irão transformar o tempo em um grande amalgama, sem intervalo.
O que Baltar flagra em seu passeio pelo Sumida é a assunção de uma época que caminha na direção contrária de tudo aquilo que está posto nos seus conhecidos trabalhos de coletas de umidades – neblina, maresia e orvalho. Ali nos deparamos com atmosferas enevoadas nas quais uma temporalidade mais lenta é convocada, ativando assim um olhar mais atento. Ali tudo murmura, no lugar de gritar. O que está em jogo ali, e na obra de Brígida Baltar como um todo, é justamente o elogio de um mundo no qual seja cultivado o espaço para os objetos ainda não identificados.
Luisa Duarte e Victor Gorgulho