Com o ar pesado demais pra respirar

Apresentação

Galeria Athena tem o prazer de apresentar a mostra coletiva Com o ar pesado demais para respirar, com curadoria de Lisette Lagnado.

 

André Griffo | Anna Bella Geiger | Antonio Dias | Antonio Manuel | Artur Barrio | Débora Bolsoni | Franz Weissmann | Frederico Filippi | Hélio Melo | Igor Vidor | Iole de Freitas | Iza Tarasewicz | Joana Cesar | Lais Myrrha | Laura Belém | Leonilson | Leticia Parente | Matheus Rocha Pitta | Raquel Versieux | Rodrigo Bivar | Rubens Gerchman | Vanderlei Lopes | Yuri Firmeza

 

E agora?

 

Às vésperas de eleições para presidentx, os “padrões de convívio humano” do “homem cordial” encontram a sociedade brasileira atravessada por discursos de ódio. Assentada na crença de um país tropical e miscigenado, a teoria social (1936) do Brasil pós-colonial de Sergio Buarque de Holanda, desabou diante das atuais taxas de violência e homicídios contra populações jovens e pobres (trans, negras e indígenas). Os assassinatos da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL-RJ) e do motorista Anderson Gomes completam mais de seis meses sem que a justiça tenha apontado os responsáveis.

 

Interessa saber como essa consciência se traduz na produção de linguagem artística. Nos últimos meses, multiplicaram-se as exposições temáticas discutindo o atual retrocesso democrático, comparando o presente momento com o golpe militar de 1964 e seu endurecimento a partir do decreto do AI-5, em 1968.

 

A mostra “Com o ar pesado demais pra respirar” procura dar um depoimento sobre a atmosfera de um momento generalizado de rara angústia. A partir do convite de uma galeria inaugurando um novo espaço na zona sul do Rio de Janeiro (estado sob intervenção federal na segurança pública desde o início do ano), perguntei a cada artista representado como o noticiário tem atingido seu cotidiano, sua forma de pensamento e de ação. Recebi relatos desencontrados, variando da pane de expressão, do niilismo, à falta de concentração. Afinal, os artistas da Athena Contemporânea viveram sua maioridade durante o período em que o país teve um governo de esquerda que assumiu como programa a redução da miséria e da fome. E agora?

 

O título da exposição foi inspirado numa obra de Frederico Filippi, composta por chapas de aço galvanizadas cobertas por tinta preta, misturas de substâncias como óleo, carvão, spray e pedaços de papel cobrindo inscrições arranhadas. Dada sua formação em aviação, o artista extraiu desse repertório o termo “estol”, que designa a perda de sustentação do avião, o momento em que “sufoca”: “sobe, sobe, sobe, até que não pode mais e começa a descer e involuntariamente abaixa o nariz”, explicou-me. O trabalho remete a resíduos de civilizações e ecoa aqui como uma manifestação pungente do incêndio que destruiu o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista (RJ).

 

Para estabelecer pontos de convergência com os anos 1960-70, a manipulação de imagens e manchetes de jornais verificou ser um dos procedimentos mais evidentes e a figuração pop de Rubens Gerchman não poderia ficar ausente. Apesar das décadas que separam os Flans de Antonio Manuel, o conteúdo ideológico da mídia impressa é um material irresistível entre os artistas que assistiram, em tempo real, às cenas dos capítulos que levaram à prisão do ex-presidente Lula. Apoiado na prática da pintura, André Griffo testemunha a onipresença do noticiário no cotidiano das pessoas, da televisão ao jornal. [O Golpe, a prisão e outras manobras incompatíveis com a democracia (2018)].

 

A construtividade de Volpi impregna o imaginário de artistas que educaram seu olhar nas festas populares – a ponto de encontrarmos nas colagens de Lais Myrrha formas de velamento para tratar de “problemas de fundo”. A palavra “fundo” remete tanto à composição como ao caráter da classe política. Sua série de colagens não somente reescreve a crise política vivida no país propondo um processo de cura [Reparação de danos] mas nos permite politizar a guinada estética do pintor Rodrigo Bivar. A crise, para esse artista, teve um desfecho radical quando suas pinturas se tornaram abstratas: “Em 2016, as figuras sumiram. Não houve transição, foi abrupto. Pintar gente branca na praia parecia um passatempo burguês.”

 

Emblemática na exposição, encontra-se uma das Trouxas ensanguentadas (1970) de Artur Barrio, quando realizou uma situação no espaço público, simulando corpos jogados em terrenos baldios pela ditadura militar. Existe uma correspondência com as fotografias da série Brasil (2013), de Matheus Rocha Pitta, em que pedaços de carne são misturados à terra vermelha de Brasília, retomando o significado da palavra “brasil” como “lugar de brasas”. Pitta ainda exibe imagens da série Galeria dos vencedores (2018), desdobramento de uma cartografia de gestos de sobrevivência e do trabalho realizado a partir da frase de Machado de Assis, “Ao vencedor as batatas”.

 

A história da entrega de um milhão de hectares da Amazônia para a produção de látex necessária à indústria automobilística de Henry Ford, no final dos anos 1920, resultou no transplante artificial de uma cidade nos moldes estadunidense, às margens do rio Tapajós. A atual pesquisa de Yuri Firmeza sobre as ruinas de Fordlândia é mostrada ao lado de uma pequena pintura de Hélio Melo, autodidata, seringueiro e ativista, que se dedicou a denunciar o processo de dilapidação dos recursos naturais da floresta. A questão dos povos originários é o assunto do vídeo que realizou com Igor Vidor, Brô MC’s, nome do primeiro grupo indígena de rap no Brasil (Aldeia Jaguapirú Bororó, Dourados, MS). Esses cantos buscam divulgar suas lutas, misturando os idiomas guarani e português.

 

Uma linha transversal aproxima as esculturas recentes de Vanderlei Lopes [Projeto (tentativa e erro)], que aludem a papéis enrugados, com os bordados geométricos de Leonilson. Um empresta valor ao outro. O Neoconcretismo continua operando na produção contemporânea, mas suas referências migraram de sentido. Assim como Vanderlei Lopes olhou Leonilson, este por sua vez olhava Franz Weissmann. Foi importante trazer aqui os golpes sobre o plano da série Amassados (1967), de Weissmann para acrescentar uma descarga de violência à tendência à sublimação que marcou os anos 1990.

 

O terceiro tópico desenvolvido na exposição é o de “corpo vivido”, que percorre as obras de Raquel Versieux (com um trocadilho cômico-tenso entre “erosão/ereção”) e de Joana César. Na prática dessa última, a produção foi se avolumando dentro do quarto e precisou sair para as ruas. De certo modo, distúrbios mentais continuam rondando tanto seus desenhos que “nascem da barriga”, feitos com o ar quente de um secador de cabelo dirigido sobre gotas de tinta, como retratos videográficos dela roendo as unhas para arrancar de si um estereotipo feminino. A visceralidade de processos psíquicos subjetivos é um procedimento conhecido nas gravuras de Anna Bella Geiger do final dos anos 1960 e no vídeo magistral de Letícia Parente, Marca Registrada (1975), em que a artista costura na planta dos pés a expressão “Made in Brasil”. De Iole de Freitas, uma sequência fotográfica (stills extraídos de um filme experimental) capta a luz que penetra na intimidade da casa, marcando a transição do corpo visceral para um corpo estruturante.

 

Preferiria não, de Débora Bolsoni, explora um caminho construtivo ao trazer o conteúdo gráfico de resistência da vanguarda russa, e nos lembra que o personagem de Herman Melville (Barthelby) não encontrou saída para seu destino a não ser permanecer íntegro. Única artista não brasileira do grupo da Athena, Iza Tarasewicz foi incluída nesse certame porque vem elaborando esculturas abstratas a partir de combinações algorítmicas de jogadas de xadrez. A movimentação estratégica que rege um jogo de guerra engendra uma trama de nós que a artista resgata de práticas artesanais na confecção de tapetes.

 

Pairando na arquitetura da galeria (área externa e área interna), Laura Belém resgata o cinquentenário do filme Desesperato (1968), de Sergio Bernardes, que trouxe às telas os dilemas de um intelectual dividido entre sua sobrevivência pessoal e a tomada de decisão na esfera coletiva (a guerrilha). Seu adesivo “Cinema mudo” alude ao filme que foi censurado na época, mas também simboliza o estado de abandono da educação e da cultura.

 

Percebe-se, finalmente, que os conflitos políticos não configuram imperativos explícitos para todos os artistas. Ainda está para ser escrita a história da produção artística do Brasil sob o golpe parlamentar e midiático que orquestrou a deposição da Presidenta Dilma Rousseff. Para além de qualquer empatia e solidariedade com aqueles que estão desaparecendo, a descrição da derrocada das instituições culturais funciona como alegoria para retratar a trágica falta de expectativas que o país precisa reverter. Nesse sentido, uma tela preta do recém-falecido Antonio Dias, The Secret Life (1970), permite imaginar a complexidade de ser simultaneamente um artista e um sujeito político em períodos conturbados.

 

Lisette Lagnado

Vistas da exposição
Obras