Apresentação

Tempo composto

 

há raros e breves momentos de sonho

em que parece que estamos vivendo de novo

algo pelo qual já passamos antes

Ivan Goncharov

 

                                              

                                                                                  seeing things that I know can't be, am I dreaming?
Baby I swear it’s déjà-vu

Beyoncé & JAY Z

                                                          

                                                                      

Quando é necessário unir dois verbos para falar de uma única ação, estamos no tempo composto. Fora da gramática, a duplicidade verbal se faz esporadicamente na vida, quando parecemos testemunhar a sobreposição de dois tempos na superfície de um mesmo instante. Em certa perda de gravidade, o tempo se faz duplo, e o futuro toma a densidade do presente, ou o passado se antecipa em uma visão. Se pudéssemos traçar um desenho geométrico da memória, seu centro de gravidade se estabilizaria no passado. É um fato comum na divisão temporal cronológica compreender o “lembrar” como um vetor que se dirige do presente ao passado convocando sua presença em uma cena da atualidade. Tal geometria abstrata entra em crise de maneira sensível na forma de distintos fenômenos, entre eles, o déjà-vu, onde o passado se camufla no presente. Este episódio simultaneamente irreverente e comum foi tomado como base para estudos de distintos campos de saber, e se tornou uma ferramenta fundamental para teorizações revisionistas sobre a suposta ordem cronológica do tempo e da estrutura arquivística da memória.

 

Na fila das hipóteses sugeridas através do déjà-vu, vale destacarmos uma forte candidata no concurso da crise dos pensamentos estáveis sobre o funcionamento da memória. Podemos falar de distintas cenas que se constroem sob uma regência aleatória e gravam-se de maneira autônoma nas nossas recordações. Às vezes, estranhamos a dinâmica involuntária do nosso próprio pensamento, que tende a esquecer o que gostaríamos de lembrar e insistir em retomar cenas que não temos qualquer interesse óbvio em rever. Distraídos pela face do conteúdo das lembranças, terminamos por omitir uma questão fulcral, aquela que se refere não à narrativa e às imagens que compõem as cenas da nossa memória, mas à própria estrutura e funcionamento de edição que regula e maquina a experiência do lembrar-se. Por trás da dúvida sobre o que nos lembramos, talvez seja necessário furar a fila com outra questão: “como construímos uma memória?”. O déjà-vu, como um fura filas, parece colocar em cena não um curto filme pronto, mas a estrutura que permite encenar, o laboratório de edição das imagens, a condição geológica da superfície onde elas se projetam, o que se repete aqui é o encontro com o aparelho que monta as cenas dos nossos filmes, o compositor do tempo.

 

Para lançar novas linhas de pensamento sobre outros fenômenos de encenação e construção imagética, como os sonhos, também foi necessário a diferentes teorias estudar justamente o modo como a realidade se monta e desmonta na distinta escala das nossas percepções. Não à toa o déjà-vu tende a ser associado a uma sensação onírica ou premonitória, e parece ativar um curto-circuito no modus operandi estabelecido para organizar a vida sob a forma de um roteiro já decorado. É no soluço dessa estrutura que a exposição tempo composto busca sua pedra primeira, no engasgar de uma certeza, ela reúne obras de distintos artistas que lançam armadilhas às sequências automatizadas na linha de produção da realidade –  relembrando uma frase de Antonin Artaud: “fazer arte é privar um gesto de sua repercussão no organismo”[1].

 

O déjà-vu é comumente descrito como um fenômeno através do qual certa situação vivenciada no presente parece ao mesmo tempo inédita e repetida, uma ilusão de memória originada pela falsa correspondência entre realidade e imaginação. Trivial e misterioso, eletestemunha um registro de fantasia operante na percepção ordinária da realidade. Não se trata, porém, de teorizar sobre tal conceito ou ilustrá-lo na exposição, mas frequentá-lo como uma experiência. Faço uma digressão que ajuda a pensar a dimensão sensível de abordagem do termo, trazendo uma referência a outro fenômeno que também irrompe sem aviso prévio e cria certo misticismo ao seu redor, o soluço. Em ambos os casos presenciamos a mobilização do corpo em certo acontecimento excêntrico; no caso do soluço, o incômodo gerado e as múltiplas explicações para a sua ocorrência desencadearam em diversas práticas criativas e curiosas formuladas em vias de sua remediação: tomar água de cabeça para baixo, levar um susto, entre outras.

 

A referência ao soluço serve para relembrarmos o déjà-vu a partir de vias sensíveis, nos aproximando dele enquanto um acontecimento vivido por distintos sujeitos em situações cotidianas e banais, mas que não deixa de lançar dúvidas e inquietações que podem nos levar a repensar a memória, o espaço, a história e as próprias vicissitudes entre ficção e realidade, operadores amplamente abordados nas poéticas contemporâneas. A mostra trabalha assim menos como um verbete explicativo e mais como um disparador sensível, estruturando-se sob uma dúvida valente: “Como uma exposição pode produzir um déjà-vu?” A pergunta de cunho delirante é necessária para que alcancemos uma radicalidade mínima da proposta, respondê-la demanda integrar a utopia ao processo de pensamento.

 

Temos nesse caminho uma primeira constatação: o déjà-vu é uma experiência ao mesmo tempo comum e extraordinária, seu acontecimento parece fazer a memória funcionar em refluxo. O vetor de funcionamento mnemônico opera, geralmente, em um sentido que vai de dentro para fora. É a partir do repertório de imagens e sensações que cultivamos e guardamos em nossas lembranças que visitamos a realidade e nela encontramos correspondências com o passado. No fenômeno que abordamos, ocorre o oposto, a realidade parece ter guardado algo da nossa memória, ela se apresenta do lado de fora, é a cena que nos arrebata instantaneamente e leva a tentar encontrar uma correspondência no passado que não conseguimos firmemente localizar. Resta certa desconfiança, uma dúvida estranha que coloca em questão a própria memória e a percepção. Vertigem dos verbos, futuro e passado se confundem numa imagem evasiva e aderente.

 

Sobre tal fenda não resolvida devaneamos possibilidades de compreensão, por vezes acreditamos se tratar de uma premonição, sonho ou mesmo uma exposição de arte. Esta é a hora em que o tempo deixa de ser simples.

 

Lucas Alberto

 



[1]ARTAUD, Antonin. “Acabar com as obras-primas”. In: O Teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 3ª ed., 2006.

Vistas da exposição
Obras