O que há de música em você

Apresentação
Alair Gomes . Alexander Calder . Aluísio Carvão . Andro de Silva . Atelier Sanitário . Ayla Tavares . Celeida Tostes . Ernesto Neto . Felipe Abdala . Felippe Moraes . Flavio de Carvalho . Frederico Filippi . Gustavo Prado . Hélio Oiticica . Hugo Houayek . Jonas Arrabal . Leda Catunda . Manuel Messias . Marcelo Cidade . Rafael Alonso . Raquel Versieux . Seis gentes dançam no museu . Sonia Andrade . Tunga . Vanderlei Lopes
 
 
 
“descobri q o q faço é MÚSICA e q MÚSICA não é ‘uma das artes’ mas a síntese da consequência da descoberta do corpo”, escreveu Hélio Oiticica (1937-1980) em novembro de 1979, em versão datilografada do texto de três folhas a ser publicado na revista Biscoitos Finos. Ele havia voltado para sua cidade natal no ano anterior depois de uma importante temporada de sete anos em Nova York (EUA) e menos de seis meses depois desse texto, em março de 1980, nos deixaria de maneira definitiva. A música, que chacoalhou a produção de Oiticica de maneira definitiva nos anos 1960 com seu encontro com o samba, a Mangueira, a cidade-morro e a marginalidade, ganhou outra dimensão, na década seguinte, com o rock e toda a cena novaiorquina, especialmente com nomes como Jimmy Hendrix, Bob Dylan  e os Rolling Stones. “mais importantes para a compreensão plástica da criação do q qualquer pintor depois de POLLOCK”, escreveu em 1979.
 
Em 1986, esse seria o título da primeira exposição individual da obra de Hélio Oiticica (que só fez duas individuais em vida). Era também a primeira exposição organizada pelo Projeto Hélio Oiticica, criado cinco anos antes por Lygia Pape, Luciano Figueiredo e Wally Salomão, para organização, catalogação e conservação das obras e documentos deixados pelo amigo. Entre as obras que estavam na Galeria de Arte São Paulo (SP) estavam o Relevo Espacial (1959/1986) e o Parangolé P4 Capa 1 (1964/1986) que hoje são o ponto de partida para esta exposição na Athena. Elas marcam dois momentos fundamentais da obra e do pensamento de Oiticica. Os relevos espaciais marcam o caminho construído pelo artista saindo da parede em direção ao espaço do mundo, dos corpos, tendo a cor como fio condutor. Já os parangolés, feitos com tecidos coloridos e outros materiais encontrados no cotidiano, são peças para serem vestidas promovendo a “incorporação do corpo na obra e da obra no corpo”. O público a partir dalí não seria mais mero espectador. 
 
“com a descoberta do corpo, q me veio como consequência da desintegração das velhas formas de manifestação artística (...) cheguei à conclusão de q não só as categorias formais de criação plástica perderam suas fronteiras e limitações (pintura, escultura etc.) como a divisão das chamadas artes também”, resumiu, em 1979. O interesse pela ideia de música parece estar relacionada à sua dimensão mais plurissensorial, Negar “as velhas formas”, entre outras coisas, era deixar de lado um pensamento que se dedicava ao olho do espectador, distante de todo o resto corpo, o lugar que ele ocupa e como ele ocupa. “é MÚSICA porque com a posta em cheque da obra e da razão dela foi a MÚSICA o fio condutor espinha-dorsal ao cerne do problema”.
 
O que há de música em você tem em seu título uma citação a outro documento: uma matéria que Lisette Lagnado (que em 2018 inaugurou a atual sede da Athena com a coletiva Com o ar pesado demais para respirar) publicou em agosto de 1992 na revista Qualis (SP). Desde fevereiro daquele ano, a obra de Oiticica fazia uma turnê de duraria dois anos por museus internacionais, nos Estados Unidos e Europa, marcando um prestigio até àquele momento inédito para um artista brasileiro. Com o título “Hélio Oiticica: O que há de música em você”, a matéria divide com o leitor pistas do que levou “o genial criador do Parangolé” a afirmar, no auge de sua carreira, um papel tão fundamental da música.  
O criador das capas dos principais discos do movimento Tropicalista (entre muitas outras coisas), Rogério Duarte relacionou o interesse pela música em Oiticica à uma atitude inconformista do artista, “fator determinante para uma recusa absoluta da ideia do ‘bom gostinho’.” O artista e performer José Roberto Aguilar – que dedicou em 1982 uma faixa de seu disco ao Parangolé, “àquele que não dividia corpo e alma”, disse que “ele poderia também ter dito que O que faço é tudo”. Já Carmela Gross, também artista, que costuma dizer que gostaria de ter sido autora da frase, apontou que “a música tem um caráter de precisão e volatilidade. A fase neoconcreta de Hélio vai fundo na precisão da cor e na repetição das formas. A sonoridade das artes plásticas bate na pele do espectador e seu corpo funciona como uma caixa acústica. O corpo é o único veículo que une o visual e o sonoro”.
 
Os 24 artistas reunidos nesta exposição, e suas obras (muitas delas inéditas), de diferentes maneiras fazem coro com essas leituras e abrem espaço para outras tantas. Não necessariamente eles tenham na obra de Oiticica uma referência primeira, mas certamente compartilham com ele questões ou indagações que ainda hoje ecoem. São interessados em uma atitude anticonformista, transformando o corpo do espectador, do artista, do espaço expositivo e da obra de arte em caixas de ressonância. A música pode ser uma possibilidade de história, mas também é entendida como processo de trabalho, e também em sonoridades, entonações, ritmos, tempo, duração. Tudo isso refletido em outras possibilidades de construção, entendimento e movimentação dos corpos – agora no plural – dentro da no espaço expositivo (o corpo do artista, do espectador e também da obra), e fora dele. 
 
Fernanda Lopes
Vistas da exposição
Obras