O Cru e o Cozido

Apresentação

"Um mito de mitos", assim Lévi Strauss definiu O Cru e o Cozido, primeiro e ambicioso volume das suas Mitológicas, publicado em 1964. No fluxo ininterrupto daquelas páginas famintas, há um antropólogo interessado em operar numa "lógica das qualidades sensíveis", conectando e comparando uma miríade de sentidos culturais construídos a partir da experiência concreta do corpo. Percorremos com ele incontáveis mitos dos povos americanos sem estado; narrativas que falam da passagem da natureza à cultura, do contínuo ao descontínuo (e vice-versa), e revelam uma lógica nada arbitrária de ver e pensar o mundo entre o fresco e o podre, o molhado e o queimado, o sensível e o inteligível. Interessava-lhe demonstrar como é possível articular proposições complexas sobre a realidade a partir de categorias da experiência concreta: cheiros, gostos, cores, texturas e outras propriedades sensoriais. Que diferenças residem no contraste entre uma mulher que sabe mastigar ruidosamente e outra que, destituída de boa dentição, se limita a lamber e babar? Como conversam o mel e o tabaco? Que dizem as poeiras da Via Láctea?

 

Apesar de ter se firmado como um marco irrevogável na antropologia do século XX, é certo que O Cru e o Cozido também enfrentou críticas diversas ao longo das décadas e pôde conhecer as limitações de sua própria façanha. Há ali a compreensão do mito como categoria transcendental, sem falar nas armadilhas euro-ocidentais da própria ambição estruturalista etc. Não convocamos, portanto, o livro de Strauss para nos filiarmos a ele, antes sequestramos seu título crocante para nos auxiliar a estabelecer outras danças entre o terreno da natureza e o terreno da cultura. Ao contrário da dicotomia caricata entre o inato e o adquirido, o dado e o construído, interessa, junto aos artistas aqui reunidos, compreender o caráter ficcional que demarca essas atribuições. Mais que isso, reside aqui a incapacidade frequente de distinguir realidade e ficção (repare n'O Construtor do Mundo (1973), de Angelo de Aquino, o desejo de territorializar a realidade – a um só tempo inventá-la e capturá-la). Tem me interessado, nas pesquisas recentes, observar, junto aos artistas, como o presente soa delirante: não sobrou acordo algum a respeito de fatos sociais básicos, os parâmetros de leitura do real caducaram ou tornaram-se descontínuos e episódicos, e o pacto democrático parece cada vez mais longínquo. Por outro lado, o acentuamento do caráter ficcional da realidade também tem nos permitido produzir sentidos desviantes aos modelos vigentes. É a imaginação, afinal, que expande os horizontes negociáveis do possível e se afirma enquanto prática social essencial para a construção de identidades coletivas, afirmando-se enquanto operação fundamentalmente política. O estilhaçamento entre as divisões de natureza e cultura nos interessa na medida em que permite compreender a vida nas suas contradições e descontinuidades. Na exposição, tal enlace está expresso em obras que tratam da relação do homem com seu território, mas também das transformações da matéria, das construções em torno da sexualidade e da identidade, e do gosto pelos híbridos e pelas metamorfoses.

 

Ainda do lado de fora do espaço expositivo, Frederico Filippi apresenta Retrasados – um relógio de sol em mármore esculpido com as palavras Milagre e Recessão substituindo as horas do dia. Pela manhã, o movimento do sol percorre as letras da palavra milagre para, em seguida, alcançar a recessão. O ciclo contínuo de graça e desgraça é pautado aqui por um tempo cósmico vicioso, supra-social.

 

Na sala diminuta da galeria, exibimos solitariamente a obra sonora de Antônio Dias, Record: The Space Between (1971). O lado A do vinil, intitulado The Theory of Counting, apresenta um despertador tiquetaqueando; O lado B, intitulado The Theory of Density, é um registro do artista desenhando e expelindo a respiração entre intervalos de silêncio. A respiração e o tic-tac do relógio situam o homem num conflito de temporalidades, dança e pêndulo entre vida e morte, norma e viço. Já no salão expositivo, ousamos costurar fragmentos de produções consideravelmente distintas, talvez inspirados pela bricolage do próprio Strauss.

Ao centro do salão, Bruno Brito apresenta duas roscas inéditas – literalmente, uma crua e outra cozida, carbonizada, como uma dupla de positivo e negativo – produzidas para a mostra e inspiradas numa prensa de mandioca vista pelo artista numa fazenda do século XIX. Elas evocam uma conversa íntima entre certa empatia das formas e a história da técnica, sobretudo no contexto de um Brasil pré-industrial. Somos levados a pensar não apenas na transformação da própria mandioca, mas também na carpintaria como recurso que negocia com o material bruto a fim de construir uma gramática própria. Além disso, a medida das roscas é de uma braça, antiga unidade de medida cujo instrumento consiste de uma vara (estaca) de 2,2m de comprimento. Outra dupla contrastante são as duas tramas apresentadas por Zé Tepedino, uma de fitilho plástico, material sintético feito de polipropileno; outra de feltro, papel feito de lã e outros pêlos animais. Além do contraste antagônico entre o orgânico e o sintético, o aspecto tramado do fitilho faz lembrar os trabalhos feitos com folhas de bananeira. Aqui, Tepedino transita no limite entre a biografia e a gramática de seus materiais.

 

O imaginário rural nos leva ainda para Green flash, green flesh, de Janaina Wagner. O vídeo, inédito no país, apresenta uma vaca Nelore Frankenstein, raça de gado que é hoje a mais industrializada e exportada do Brasil. Entre filmagens em 16mm e construções em 3D, vemos uma criatura fantasmagórica rumo a lugar algum, sob as altas temperaturas de uma terra arrasada. A liquidez da imagem do vídeo é contrastada pela presença das pinturas de José Antonio da Silva, também ao seu modo fascinado pelas contradições contidas no gado. Em sua obra, testemunhamos a implantação da agricultura na região noroeste do estado de São Paulo, a transformação da mata em lavoura e a conversão de um país agrário em urbano de modo violento e visceral – não à toa seu céu é sempre curto, apertado pela exploração de um solo que não cessa de queimar. Logo por ali, um enunciado de Vanderlei Lopes alerta: 'Every day the paradise is recreated', forjando no bronze e no guache um papel de rascunho, pondo em cheque o Brasil-terra-que-tudo-dá como esboço-ruína. É como as supostas paisagens idílicas de Rafael Alonso – encenação de si mesmas, um esgarçamento do clichê dos trópicos.

 

Dos bovinos, percorremos o pêndulo do cru e do cozido em obras que abordam o sexo na fronteira entre o homem e o animal, o desejo e o duplo. A série 'Pesquisei “África” num site pornô', de Renan Teles, questiona, a partir de uma prática pictórica virtuosa, os fetiches sexuais em torno de corpos negros e sua suposta condição selvagem e primitiva. Já Posse, também de Lopes, apresenta uma "foda" de caráter espelhado, quase camuflada, reivindicando, a partir do título, a dimensão política que envolve o ato de "se foder". Anis Jaguar e Sumé Aguiar apresentam, por sua vez, uma imagem de cunho onírico e mitológico – vemos duas criaturas prestes a emergir das águas, adormecidas em outra dimensão. O tempo delas é outro, talvez o tempo do mito, da fábula, do princípio ou do pós fim do mundo.

 

Junto a elas, Bruno Ferreira apresenta duas obras que transitam entre o animal, o vegetal e o mineral – parecem a um só tempo mancha de óleo, galho fossilizado e rocha metálica. Elas levam o nome de Kraken, personagem mitológico nórdico que habita os mares profundos, figura primordial do que é considerado abjeto. A abjeção fragiliza as fronteiras, problematiza as passagens da natureza à cultura, e vice-versa. Também é o caso de Ilê Sartuzi, Dóra Smek e Darks Miranda, cada um ao seu modo fragmentando e dilacerando corpos sem origem, restos e aglomerados nada coesos, em conflito consigo mesmos. Ou as “Novas mucosas”, de Diambe, que apresentam raízes e leguminosas como seres híbridos além do humano, fabulados enquanto personagens de ficção científica tanto em bronze patinado quanto em óleo e têmpera sobre tela. Em Ilustração da Morte (1975), de Luiz Alphonsus, a reflexão sobre o corpo é virtualizada, destituída de matéria, integrando-se ao Todo.

 

Dadas as circunstâncias de um capitalismo pós-humano, cuja realidade transgênica excede qualquer binarismo, é possível dizer que esses artistas estressam as relações entre naturalidade e artificialidade sem buscar dissociá-las. Em outras palavras, são produções que apostam na sua própria fragmentação – espécie de rebeldia e insubordinação, propriedade do que é monstrum. Como diria Bruno Latour, "Como poderíamos desencantar o mundo, se nossos laboratórios e fábricas criam a cada dia centenas de híbridos, ainda mais estranhos que os anteriores, para povoá-lo?"

 

Em suma, essas são obras que desafiam as estruturas convencionais de enunciado e representação, procurando expandir nossos modos de escrever o mundo e a nós mesmos. Se não é possível existir fora da linguagem, é através dela que sofisticamos uma imaginação que permite organizar o real, testar modos de viver e sonhar coletivamente, ontem e hoje.

 

Pollyana Quintella

Obras