Mar, engula-me

Apresentação
Um fio de mar colore o horizonte
 
I think the sea has thrown itself upon me and been answered, at least in part, and I believe I am a little changed – not essentially, but changed and transubstantiated as anyone is who has asked a question and been answered.
 
Hart Crane em carta a Waldo Frank. Abril. 1924.
 
 
Tomamos emprestado como título deste texto os versos do poeta sulmatogrossense Manoel de Barros, do seu poema Os Deslimites da Palavra, para guiar o norte que toma as paredes, o chão, o teto e, aqui, olha para uma baía a seiscentos quilômetros, onde muitos dos gestos contidos neste espaço se originaram, tomaram forma, se desdobraram em sentido e imagem, e que derivam da ideia de criatura-imensidão chamada pela linguagem de Oceano. 
 
A paradoxal doçura que habita a ideia de morrer no mar também se vê refletida em obras como É Bom Morrer no Mar, de Dorival Caymmi. Composto junto de Jorge Amado durante uma tarde na casa do pai do escritor baiano, e muito influenciada pelo seu romance Mar Morto, de 1936, assim como no título da exposição, Mar, Engula-Me, que deriva diretamente de Sea, Swallow Me, lançada em 1986 pela banda escocesa Cocteau Twins em parceria com Harold Budd, e que faz parte do seu álbum The Moon and The Melodies, onde uma ambientação etérea nos carrega na busca por algo indefinido, que nos seduz pela boca e pelo sal, ao passo que nos molha e nos seca, e que também fala, aqui, dos artistas que se perderam no mar, aos moldes de Bas Jan Ader, que em sua derradeira performance, em 1975, entregou-se ao oceano em um pequeno barco, ou o poeta Hart Crane, que saltou do navio que o levava à cidade de Nova Iorque em 1933, lembrado por Vinicius de Moraes no seu poema O Poeta Hart Crane Suicida-se no Mar, de 1953.
 
Aqui, falamos desse tempo psicológico que habita o oceano, a partir de composições como as de Eduardo Baltazar (Rio de Janeiro, 1989), onde cenas soturnas descrevem um espaço privilegiado de contemplação da possibilidade desoladora e bela que existe na melancolia de se observar um horizonte infinito; ou em Poeira de Sol (2022-2023) de Laura Belém (Belo Horizonte, 1974) e Naufrágio (2006), onde a artista nos fala sobre o entardecer, aquele resto de areia que se pega nos nossos cílios e nos nossos olhos ao fim de um dia, e também da possibilidade de desaparecimento e dissolução que existe no contato do humano e do hídrico.
 
Falamos também sobre interioridade, como um movimento que se apresenta neste contexto a partir das estruturas de Jonas Arrabal (Cabo frio, 1984), que toma do próprio refugo do oceano - como conchas de ostras e de outros animais marítimos, corais secos, hélices de chumbo que simulam uma coluna vertebral - um motivo de verticalidade que corrompe a horizontalidade característica da contemplação marítima, nos guiando a possíveis mergulhos no abismo, ou Ayla Tavares (Rio de Janeiro, 1990), que como que em um jogo semântico, pega o barro e o transmuta, nos falando sobre água por meio da queima.
 
A ideia de descanso e lazer também muitas vezes associadas à tênue faixa de areia que circunda o oceano se reproduz no espaço expositivo a partir dos trabalhos de Débora Bolzsoni (Rio de Janeiro, 1975), que, em uma inversão formal, como em Margem (2009), trazem sobre a areia a reprodução daquilo a qual contempla, ao desenhar pequenas ondas sobre montes de areia construídas a partir de um exercício lúdico, ao mesmo tempo que cerceia a possibilidade de descanso ao condicioná-la a um espaço mínimo, como vemos na pequena cadeira de madeira contida em um cubo em Leitura na Praia (2012). E tudo que eu posso te dar é solidão com vista pro mar, como escrito por Alvin L. e interpretado por Marina Lima, no seu álbum de 1991, Fullgás. O Rio de Janeiro e sua paisagem, além de ensejo, aqui também se  torna o motivo que habita as composições de Renata Leoa (Rio de Janeiro, 1997), informadas por um gesto ágil, vertical, que emaranha no campo de visão as noções de fauna, flora e cidade, nos ambientando em um entre diluído que inverte e apresenta o modo como, o gesto humano também é capaz de ensaiar engolir o natural - e o questionamento se esse mesmo gesto sucede, ou não.
 
E nos voltamos ao natural que observa, como nos trabalhos de Ruan D`Ornellas (Volta Redonda, 1987), que nos faz confrontar, a partir dos seus fragmentos de flora que se diluem perante um pôr do sol mudo, uma noção de esquecimento natural, e de certa responsabilidade com a manutenção ambiental da memória; ou em Rodrigo Bivar (Brasília, 1981), que na sua apresentação mais pura de uma paisagem, nos fala sobre a impassibilidade do oceano ao nos apresentar um fragmento rochoso, coberto de algas, sendo engolido pela voracidade do oceano. Intitulado Moby Dick, essa composição acena à grande baleia branca do clássico de Herman Melville, escrito em 1851, algo capaz de amar com tanta força o oceano, do alto da sua angústia como alguém dividido por aquela criatura que, a qualquer momento, o pode engolir.
 
Falar sobre o oceano não é uma tarefa fácil: e esperamos que o corpo de trabalhos propostos para este espaço deem conta da febre, do sono, do sonho e da imensidão que habita o lugar intrínseco da memória, da violência, da sede e, acima de tudo, da espera contemplativa que busca responder um anseio ancestral que ainda não coube na nossa linguagem.
 
Guilherme Teixeira
 
Vistas da exposição
Obras