Raquel Versieux: Retorno ao ferro enquanto aguardo o algodão florescer

Apresentação
Em Retorno ao ferro enquanto aguardo o algodão florescer, Raquel Versieux nos mostra que há uma presença determinante, apesar de muitas vezes oculta, que precisa ser. reconhecida. Começando pelo título, no qual os termos “retorno” e “aguardo” são verbos conjugados na primeira pessoa do singular no presente do indicativo: eu retorno ao ferro enquanto eu aguardo o algodão florescer. “Eu”, que no momento da escrita se remete diretamente à artista, mas que a cada momento em que é lido, incorpora todas aquelas que leem o nome desta exposição. Essa coletividade de eus provocada pelo título povoa toda a exposição e as quase duas décadas de produção da artista. Natural de Minas Gerais, Raquel Versieux vem construindo um corpo de trabalho que explora o desejo pela investigação da paisagem, mas não uma paisagem qualquer. Interessa à artista aquela que é marcada pela presença e ação do corpo humano, com seus desdobramentos políticos, sociais, econômicos, poéticos, históricos e cotidianos. Aquela mediada por mineradoras e monocultivos; por organizações políticas e sociais de proteção ambiental e direito à terra, e Carlos Drummond de Andrade.
 
Nesta exposição estão reunidos trabalhos elaborados a partir do contexto do projeto de arte de base comunitária Manejo Movente, que tem Raquel como uma das fundadoras e que promove desde 2019 intercâmbios entre arte contemporânea e gestões políticas em contextos sociais na terra. Três anos antes, em 2016, quando se mudou para o Cariri cearense para atuar também como professora, na Universidade Regional do Cariri, a artista viu ecoar a quilômetros de distância e em um contexto diferente, as questões que a moviam em relação à paisagem no contexto mineiro. Na região do Cariri, a dimensão de uma paisagem política envolve outros aspectos sobre os usos da terra e suas histórias, diferentes biomas e heranças históricas, o acesso à água (ou a falta dele), além das relações de tensão entre zona urbana e rural, e as diferentes regiões do país. A artista afirma que, em seu processo, marcado pelo jogo de palavras erosão e ereção, hoje a paisagem mineira se relacionaria mais à erosão enquanto que, no Cariri, compreende seu interesse se deslocar pela ereção de contranarrativas. Em 2019 o Manejo Movente foi a proposta de Versieux para o 36º Panorama da Arte Brasileira – Sertão, realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo, apresentando práticas e discussões que envolviam e envolvem pessoas residentes em duas comunidades rurais distintas do município do Crato: o Assentamento 10 de Abril - MST, localizado no distrito de Monte Alverne, e o Baixio das Palmeiras, onde está situado o espaço de memória e resistência Casa de Quitéria.
 
O algodão rubi, usado em parte dos trabalhos reunidos nesta exposição, é resultado do projeto de plantio desenvolvido pelo coletivo. Na instalação Retorno ao ferro (2023), nove  tubos de ferro, cada um com dois metros de altura, tem os furos em suas superfícies atravessados por chumaços de algodão. Ferro e algodão, materiais aparentemente tão diferentes, revelam em sua brutalidade e delicadeza práticas de manejo da terra, na expropriação e na semeadura, em Minas Gerais e Cariri. Já na série Escritos do temporal, realizada desde 2021, o algodão orgânico bruto transformado em fios é base dos bordados feitos pela artista. O processo não deixa de ser uma conversa com as mulheres de gerações anteriores de sua família, que a artista lembra terem sido habilidosamente treinadas, prendadas e preparadas para tecer, fiar, bordar, crochetar, tricotar, costurar, rendar e bolear. O processo de bordar também se aproxima de um ato de escrita, construindo formas que ao  final lembram uma espécie de linguagem a ser decodificada. As noções de ancestralidade e comunicação também se fazem presente no termo “temporal” presente no título da obra, que também se remetem a um tempo oral. O cultivo do algodão também marca Semeadeiras (2023), onde tarugos de ferro prendem cordões feitos de chita trançados à mão. Esses quase-colares guardam em suas formas as presenças das participantes do Manejo Movente. As formas do ferro remetem às suas silhuetas em diferentes momentos durante o plantio, a semeadura e a colheita do algodão. Retorno ao ferro enquanto aguardo o algodão florescer é, assim, de uma só vez, colheita e replantio.
 
Fernanda Lopes
Vistas da exposição
Obras