Permissão para falar
“Será isso, apenas, a ordem natural das coisas?”, perguntava o velho porco Major logo no início do seu discurso, que acabou servindo de estopim para a Revolução dos Bichos. Publicado em 1945, o livro de George Orwell, conta que um belo dia, os animais da fazenda do Sr. Jones se dão conta de que a vida indigna a que são submetidos não é a ordem natural das coisas e, liderados por um grupo de porcos, expulsam o fazendeiro de sua propriedade desejando construir nela um lugar onde todos fossem iguais. Os sete mandamentos que constituiriam a lei inalterável pela qual a Granja dos Bichos deveria reger sua vida a partir da revolução foram sendo, aos poucos, adaptados, alterados e excluídos, até sobrar apenas um: “Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros” - a versão original, que dizia “Todos os animais são iguais”, foi alterada no meio da noite, sem que ninguém visse.
A exposição Permissão para falar reúne artistas cujos trabalhos tentam lidar com essa "ordem natural das coisas”. Em comum, todas as obras trazem referências ao discurso e à história como construções, com interesse especial nos usos e variações de significados que as palavras podem assumir, dependendo de quem fala, de quem escuta ou mesmo quando são silenciadas. Na ambiguidade guardada no título que aponta ao mesmo tempo para uma imposição (conceder permissão) e para uma demanda (exigir a permissão), a exposição reafirma seu interesse em pensar o lugar da fala e da escuta. Aqui, a produção contemporânea se apresenta como uma ferramenta potente de reavaliação e rearticulação da história, trazendo para o presente questões do passado cujo impacto pode ser sentido hoje e para frente.
A história é recuperada nos trabalhos de Beto Shwafaty. Em Anhanguera/Bandeirantes (2015), o artista propõe uma relação entre as missões de exploração do interior do país lideradas pelos bandeirantes com o desenvolvimento econômico, representado pelas principais vias de acesso ao interior do estado de São Paulo, que dão nome ao trabalho. Já em Abstrações Sujas (2015), o personagem principal é o EDISE, edifício sede da Petrobrás, localizado no centro do Rio de Janeiro. Apresentado como "símbolo do chamado Brasil grande" nos anos 1960 pela imprensa nacional, décadas depois teve sua imagem circulando novamente na mídia quando a Polícia Federal iniciou a primeira fase da chamada "Operação Lava Jato".
Outros símbolos nacionais oficiais também estão presentes na exposição. Em Bandeira Nacional (2015), de Jaime Lauriano reúne uma série de trabalhos que, a partir de técnicas de tecelagem artesanal, buscam subverter o controle e a regulação deste símbolo criado como um dos transmissores do sentimento de união nacional e soberania do país, e ferramenta de aproximação entre governo e população. Essa relação, conturbada, também se apresenta em Vocês nunca terão direito sobre seus corpos (2015), do mesmo artista. Frases de racismo institucional, encontradas em comunicados oficiais e boletins de ocorrência da Policia Militar Brasileira, ganham corpo e presença quando entalhadas em madeira. Outro símbolo nacional, nossa constituição, é ponto de partida de Reconstituição (2008). Aqui, Lais Myrrha selecionou todas as páginas da Constituição Brasileira que têm a palavra “exceção”. Essa palavra, que aparece em destaque nas reproduções feitas pela artista enquanto todo o resto do texto fica desfocado, chama atenção para a flexibilidade de leitura das leis no país e, como consequência, a desigualdade nas suas aplicações. Os trabalhos de Lais e Jaime nos fazem pensar, a partir dos silêncios que trazem à tona, que não é só na fazenda do Sr. Jones que "uns são mais iguais que os outros".
É justamente pelo silêncio, ou a impossibilidade/dificuldade de comunicação, que outros trabalhos se interessam, revelando o quanto este é tão importante quanto a fala na construção da História e dos discursos. Em Hoje tem cine (2015), Laura Belém cria letreiros em neon com títulos dos filmes que marcaram a história do Cine Palladium, que foi um dos cinemas mais importantes de Belo Horizonte. Na exposição, está o letreiro de Jardim de Guerra, de Neville D'Almeida, um dos muitos filmes recolhidos e censurados pela Ditadura Militar em 1968. Também interessado nos silêncios que constroem nossa h/História, o curta Entretempos (2015) de Yuri Firmeza & Frederico Benevides parte do material arqueológico encontrado na região portuária do Rio de Janeiro, fotografias, imagens de arquivo, documentos oficiais e de negociações dos escravos, para pensar o atual processo de gentrificação que atravessa, hoje, a cidade. Mas talvez nenhum silêncio seja mais historicamente incômodo que o revelado na video-instalação Nós-Tukano (2015) de Paula Scamparini. Enquanto, em uma das imagens, ouvimos o índio Carlos Doethiro Tukano, líder político e cacique da maior aldeia urbana no Brasil, a Aldeia Maracanã, narrar a história de sua terra para um grupo de crianças, em sua língua-mãe, no vídeo ao lado, que acompanha a fala de Doethiro, homens-brancos de diversas origens procuram reproduzir suas palavras mesmo sem entender seus significados.
Outro grupo de trabalhos aponta para o exercício, coletivo e individual, de construção de significados. Na série fotográfica O ensino das coisas (2015), Sara Ramos revela como é difícil definir certos conceitos ou palavras. O ponto de partida são cartazes encontrados pela artista em uma escola de design abandonada no Uruguai, onde os alunos tentavam expressar o conteúdo das palavras através de formas. Já em EEDDM I, V e VI (El encuentro de dos mundos), realizadas em 2013 por Vanderlei Lopes, as formas orgânicas das folhas, fundidas em bronze, apresentam recortes geométricos e precisos feitos pela mão do homem (recortes tão precisos que não encontramos na natureza). Aqui, os "dois mundos" citados no título, podem ser lidos como a natureza e a cultura, e a tentativa de construção de uma relação (não necessariamente amistosa) entre elas, a partir das folhas em partes e dos vazios ativos entre elas.
A exposição se completa com a série de fotografias de Diego Bresani. Se boa parte das obras reunidas aqui parte do pensamento de elementos da grande História (sem deixar de lado a certeza de que ela tem impacto sobre a vida individual), as obras de Bresani apresentam interesse sobre a dimensão mais pessoal dessa construção. Suas fotografias, a maioria em preto e branco e registradas em filme, são como uma espécie de diário dos primeiros meses do artista em Paris - estrangeiro, sem falar a língua e quase sem se comunicar com as pessoas. A observação do mundo, suas paisagens e personagens, compõem a essência do trabalho, que tenta reconstruir sua própria história (de outra maneira que não a da fala) e sua relação com a prática da fotografia, depois de anos de trabalho em estúdio e com limites bem definidos.
Assim, Permissão para falar nos faz pensar que o mundo como o conhecemos, seja em sua dimensão mais pessoal ou em sua dimensão mais pública, é uma construção, uma invenção estabelecida e compartilhada (pacificamente ou não), e como tudo o que é inventado, é inventado por alguém, por algum motivo, muitas vezes com uma boa dose de esforço e "alternative facts", deixando outras possibilidades e versões de lado, e por ser uma construção, poderia ser desfeito e reinventado a todo e qualquer momento. Toda h/História é uma questão de ponto de vista. Ou você acha mesmo que essa é a ordem natural das coisas?
Fernanda Lopes