Matheus Rocha Pitta: O reino do céu

Apresentação

Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.


Mateus 5:10

 

O conjunto dos gestos utilizado na realização de cada um dos ofícios e sacramentos de uma igreja é conhecido como liturgia. Vocábulo de origem grega, a palavra indica uma espécie de serviço público, um trabalho feito pelas pessoas em nome de outrem. No antigo uso profano, designava todo e qualquer serviço em favor do povo e apenas no século II passou a qualificar os serviços de um culto, entendidos posteriormente como sacramentos religiosos. Em uma liturgia, palavras ou gestos encontram-se intimamente ligados, indissociáveis. São parte de uma narrativa maior, conectada a sinais e símbolos de forma estreita. Valendo-se da estratégia de desconectar as palavras dos mitos, orientando sua atenção para ações ritualísticas inseridas nessas narrativas fundamentais, a singularidade da produção de Matheus Rocha Pitta oferece uma noção gestual da manifestação dos corpos e opera na arte como um fato social.

 

O Reino do Céu investe na criação de uma igreja, na rua Barão de Guaratiba, no bairro da Glória, vizinha à antiga sede política do país, quando o Rio de Janeiro era capital federal. Embora o teor político das imagens incrustadas pelo artista nas estelas e lajes de cimento seja urgente, a natureza cerimonial dos gestos que pontuam essa mostra é fruto de uma investigação de fôlego, longa jornada crítica do artista sobre mecanismos de troca que regem a vida cotidiana. A liturgia que emana do surgimento dessa igreja deriva da própria incorporação da marcas, rubricas, nomes cifrados ou monogramas que o tempo grava sobre as coisas. Um espectro apresenta-se como um ser intimamente histórico. À morte e à decomposição sucede o estágio espectral, aquele que aparece repentinamente emitindo sussurros insuportáveis aos ouvidos não familiarizados. Exibe escarificações produzidas pela história que só farão sentido a quem delas tiver sido íntimo. Uma vida póstuma, complementar. Tudo já é, já tem final ou acabou.

 

O ritornelo, as simetrias, os ritmos e outras formas de regularidade são estratégias literárias que os poetas empreendem pois viabilizam ao sujeito a dimensão temporal da ação. O efeito cumulativo das imagens na cruz exibida no início da nave desse templo profano vai além de um recurso meramente construtivo, de composição formal: o uso repetido de uma mesma imagem emite um sussurro incessante. São estes os modos pelos quais a expressão poética captura nossa atenção, na repetição dos punhos em riste. Sua regularidade produz uma espécie de reencontro com algo que, ao se multiplicar, reverbera no já vivido, produzindo prazer. Cabe lembrar que o efeito cumulativo é um processo intrínseco ao fazer de Rocha Pitta, para além dos trabalhos apresentados aqui – remonto ao vasto arquivo de imagens que o artista coleciona. Presentes em maços de cigarro, os olhos na cruz que abrem a igreja foram recortados de embalagens que advertiam sobre a cegueira decorrente do hábito de fumar. Ao seu lado, repetem-se na massa de cimento imagens de uma manifestação em que um professor recebe spray diretamente nos olhos. A cena evoca um martírio, com o corpo do homem sendo imobilizado pela brutalidade de policiais. Preso por seus braços e pescoço, outro oficial atinge diretamente os olhos do homem, como uma mirada sádica a um batismo adulterado.

 

 

A operação de Rocha Pitta esvazia o valor de informação das imagens de levantes ao repeti-las e pulverizá-las, orienta sua observação para a forma que as constitui. Neste arquivo de relevância claramente político, nem bem sabemos qual a natureza da nuvem espessa que embrenha esses corpos todos. O gás lacrimogêneo não apenas empresta dramaticidade às cenas, que adquirem presença fantasmagórica, mas apresenta um céu materializado na terra. Imersos dentro de uma névoa densa, fragmentos de corpos foram capturados em fotografias e desmaterializados na luz do vídeo. Estamos diante de quatro narrativas paralelas, apresentadas no mesmo recinto. Vêem-se membros apenas, por vezes mãos ao alto ou pernas em riste, anatomias em marcha.

 

 

Matheus Rocha Pitta rearticula a relação entre signo e referente, dando a entender que as imagens são partes de um quadro maior, de um movimento em curso manifestamente deixado de lado. O que não sabemos sobre a imagem adensa as informações que conseguimos apreender a partir da repetição da justaposição de imagens. Protestos, revoltas, levantes, insurreições. Em tempos esgarçados, os vídeos convidam que identifiquemos, revolta, abdica de dogmas. Matheus Rocha Pitta identifica a atmosfera celestial e a coreografia do martírio e da rebelião nas fotos que coleciona e instaura uma lógica eclesiástica no espaço. O gesto é um acontecimento, é um drama em si. Há gestos que, excessivamente enfáticos para o mundo habitual, apontam para um mundo fora de si. Seentendemosapolíticacomoaesferaabsolutaeintegraldagestualidadedoshomens,estaríamos então falando de uma presença ritual dos corpos, de presença espectral: daquilo que vive apesar da morte, dos gestos que apontam para um mundo estrangeiro, a outra circunstância.

 

De que é feito um espectro? Com tal questão Giorgio Agamben inicia um parágrafo de seu ensaio Dos usos e desvantagens de viver entre espectros. A espectralidade é, sobretudo, uma forma de vida. Autor recorrente nas leituras de Rocha Pitta, Agamben oferece uma pista para compreendermos a complexidade da presença póstuma que as peças do artista conseguem exorbitar. Para o filósofo italiano,um espectro é feito de signos, sem sucesso, quem são aqueles que revelam-se em meio às cortinas de fumaça, entregando à contemplação papéis jornal impregnados de manchas de cor, como num sfumato.

 

Alinhados no chão da sala que inaugura a igreja, copos de vinho receberam gotas de leite: os lactobacilos reagem e transformam o vinho em vinagre, de sangue a antídoto. No centro da sala final, no lugar de água benta a pia contém leite de magnésio. Ambas as substâncias minimizam o efeito do gás usado para conter as massas. Aos borbotões, jatos de leite são esguichados mirando a direção de uma frente de ataque policial uniformizada na imagem que vemos encrustada no centro de uma das lajes da mostra. Nas laterais, partes de caixas de leite e nódoas de magnésio. Em displicente desalinho, lê-se no concreto uma palavra de ordem impossível: "Tire leite de sua pedra". Não somos mais público, nem visitantes, mas assembleia.

 

Ulisses Carrilho

Vistas da exposição
Obras