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A consciência de que estão prestes a fazer explodir o continuum da história é característica das classes revolucionárias no momento de sua ação. A grande revolução introduziu um novo calendário.
O dia inicial de um calendário funciona como uma câmera de lapso de tempo histórico.
- Walter Benjamin -
Desde a adolescência o artista Matheus Rocha Pitta coleciona recortes de jornais, em um arquivo que hoje tem uma extensa quantidade de imagens reunidas. O ano da mentira (2017) foi realizado a partir de uma seleção deste vasto arquivo pessoal, com fotografias sobre as manifestações que ocorreram em diversas cidades do mundo, e que por conta da Primavera Árabe, em 2010, tornaram-se cada vez mais comuns mundialmente. A obra foi mostrada em Berlim, onde Matheus passou um ano na residência Kunstlerhaus Bethanien. Na ocasião, o calendário foi exibido na sua versão em inglês, que traduzido chama-se "The Fool's Year", tal como o dia da mentira, "The Fool's Day".
Neste trabalho, a sucessão de imagens de protestos é organizada em doze sessões, de maneira a formar um calendário, no qual cada um dos 365 dias é representado por um recorte de manifestação. Em meio a essa sensação de familiaridade com o tema, encontra-se infiltrada uma sutil e importante subversão: no lugar das mensagens contestatórias dos cartazes segurados pelos manifestantes, o artista introduziu a inscrição "1 de abril 2017". O espectador encontra-se diante de um ano inteiro que se tornou um único dia.
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Matheus rocha pitta
The Fool's Year, 2017
365 recortes de jornais e 365 datas impressas sobre papel japonês (365 newspaper photographs and 365 printed dates pasted on Japonese paper)
57,5 x 77,5 cm cada (22.6 x 30.5 in each) -
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Cada dia é representado por uma fotografia de jornal de manifestantes segurando cartazes, faixas ou bandeiras, cuja reivindicação política específica eu cuidadosamente retirei e substituí, no início desta manhã, pela data de 1º de abril, exatamente como é recentemente impressa nos jornais de hoje. Essas imagens vêm de meu próprio arquivo, que alimento quase todos os dias com fotos de jornais. Eu amo a linguagem de protesto, não é preciso concordar com seu conteúdo para amá-la. Eu coleciono essas fotos há quase oito anos, independentemente de sua reivindicação política, independentemente de seu local e data. É um arquivo de gestos, de pura "medialidade" sem "finalidade".
Portanto, hoje você vê 365 imagens de protesto, 365 dias no passado, que não reivindicam nada além da consciência de hoje. Pois ser tolo é apenas questão de estar fora do tempo, de quebrar o relógio, como Benjamin cita em sua 15ª tese sobre o conceito de história:
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Quem teria acreditado!
Dizem que os novos Joshuas ao pé de cada torre,
como se estivesse irritado com
o próprio tempo, disparado nos mostradores
para parar o dia.
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Mas, para além da compreensão do tempo, ou da cristalização dele, testemunha-se também a retirada do conteúdo das imagens dos brados de forma a sublinhar a linguagem característica dos protestos, bem como o repertório de gestos exististes nele - braços erguidos, multidões, diversos rostos que se tornam uma só massa uniforme. "Ao retirar as demandas políticas dos protestos e incluir um eterno primeiro de abril em seu calendário, Matheus busca justamente "parar o tempo", estabelecer uma interrupção e, no mesmo lance, estancar uma certa narrativa", menciona Luísa Duarte em texto curatorial de 2017.
O dia primeiro de abril, como sabemos, é reconhecido como o dia da mentira no Brasil. Como afirma Rocha Pitta, "o primeiro de abril não é só o dia da mentira, mas sim o dia em que a verdade e a mentira se confundem. Se vivemos no tempo da pós-verdade então habitamos um eterno primeiro de abril". Menos do que uma escolha diante da relação binária verdade versus mentira, o "1º de abril 2017" estabelece uma zona de incerteza.
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Matheus Rocha Pitta foi contemplado com o Prêmio Illy Sustain Art (2008 - Madri, Espanha). Participou da 9ª Bienal de Taipei (2014 - Taipei, China) e da 29ª Bienal de São Paulo (2010 - São Paulo, Brasil). Sua obra faz parte de importantes coleções públicas como o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, Brasil), Pinacoteca de São Paulo (São Paulo, Brasil) e o Castello di Rivoli Museo d’Arte Contemporanea (Torino, Itália).
Dentre as exposições individuais destacam-se: 2020 - The Curfew Sirens (Kunstverein in Hamgurg - Hamburgo, Alemanha); 2019 - Primeira Pedra e Acordo (Pinacoteca do Estado de São Paulo - São Paulo, Brasil); 2018 - No Caminho da Pedra (Espaço Cultural BNDES - rio de Janeiro, Brasil); Memória Menor (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro - rio de Janeiro, Brasil); 2017 - O Reino do Céu (Galeria Athena – Rio de Janeiro, Brasil); 2015 - Primeira Pedra – Mendes Wood DM – São Paulo, Brasil); 2012 - L’Accordo, (Fondazione Morra Greco - Nápoles, Itália); entre outras.
Dentre as exposições coletivas destacam-se: 2018 - Com o ar pesado demais pra respirar (Galeria Athena – Rio de Janeiro, Brasil); Estructuras Vivientes. Ritos sin mitos en el arte contemporáneo – XIV Bienal de Cuenca (Cuenca, Equador); 2017 - Yoko Ono: The Sky is Still Blue, You Know… (Instituto Tomie Ohtake – São Paulo, Brasil); 2016 - The Pagad (Galleria Massimo de Carlo – Milão, Itália); 2014 - Si No Todas las Armas, los Cañones (Matadero Madrid – Madri, Espanha); 140 Caracteres – (Museu de Arte Moderna de São Paulo – São Paulo, Brasil); 2013 - Collective Fictions (Palais de Tokyo - Paris, França); 2011 - Rendez Vous 11 (Institut d’Art Contemporain – Lyon, França); entre outras.