-
Laura Belém: O tempo é agora, tempo de espera
15 Abril - 22 Maio 2021
-
O que o passado, o presente e o futuro compartilham é um substrato, uma base de atemporalidade.
A linguagem da arte pictórica, por ser estática, é a linguagem dessa atemporalidade.
Mas o que ela aborda – ao contrário da geometria – é o sensual, o particular e o efêmero.
— John Berger
O trabalho de arte deve possibilitar o contato com o desconhecido e consigo mesmo, com suas próprias questões e com a imaginação.
— Cao Guimarães
-
Na praça onde moro, bandos de maritacas cantam em algazarra, celebrando o início e o fim de cada dia. O céu de outono vai aos poucos revelando um azul mais profundo que o do verão, apesar do calor que paira no ar, turvando-o, e dos rumores da chuva que ainda não caiu. A cidade é menos ruidosa que São Paulo, e ao escalar a Serra do Curral, a 1.300 metros de altitude do nível do mar, ouvem-se menos ruídos ainda, o que dá a impressão de que o tempo está em suspensão.
Desde o começo dos anos 2000, venho trabalhando com uma série de linguagens, incluindo a instalação, a escultura, o desenho, a colagem, a fotografia, o som e o vídeo. Os materiais e técnicas variam de acordo com a intenção e o conceito de cada projeto. Minha prática é guiada pela observação, experimentação, e diálogo com entorno, o que com frequência leva a trabalhos que podemos chamar de ‘context responsive’. O trabalho nasce dessa mescla do mundo exterior com o mundo interior – sentimentos, sensações, e uma ponte entre o visível e o invisível. Por outro lado, intenciono sensibilizar um aumento da consciência do que está ao nosso redor, da forma como nos relacionamos com o mundo, e da minha própria consciência.
-
Laura Belém
Entreato I, 2020
Minério de ferro, aglutinante e colagem de papel carbono sobre papel sumi-e (Iron ore, addhesive and collage of carbon paper on sumi-e paper)
40 x 30 cm cada (15.7 x 11.8 in each)
Moldura: 47 x 37 cm cada (Framed: 18.5 x 14.6 in each)
-
Comecei com uma pequena colina, um pouco acima e ao norte de um campo onde eu estava juntando palha. Nesta colina havia três pereiras negligenciadas, duas plenamente verdes e uma acinzentada, sem folhas e morta. Atrás delas, o céu azul com grandes nuvens brancas.
Esse pequeno canto da paisagem - que até então eu nunca tinha reparado - me chamou a atenção e me encantou. Encantou-me como um rosto que vemos passando por nós na rua, desconhecido, e até mesmo esquecível, mas por algum motivo encantador, ao sugerir uma vida que está sendo vivida.
— John Berger
-
Os trabalhos reunidos nesta exposição foram produzidos entre 2017 e 2020, e o seu suporte é o papel. Há também um vídeo que traz uma folha de papel sendo perfurada por um incenso. Todos eles dialogam com a natureza, o tempo, a transiência, e um espaço entre as coisas. A natureza não é uma temática em si em minha poética, mas uma ponte com o mundo, e por isso considero que os trabalhos são criados a partir da natureza, em diálogo com ela, e não sobre ela.
Qual o lugar essas obras ocupam na minha criação? A fotografia, o desenho, a colagem, a monotipia, e mesmo o vídeo em questão, são como notas silenciosas num papel. Esses trabalhos não são da esfera do espetáculo, não revelam tudo, mas sugerem histórias e relações com o mundo. São motivados por algo que me atravessou, por uma impressão que ficou no canto do olhar, ou por sentimentos que pedem para ser revisitados.
-
Laura Belém
Entre as Estrelas e Seus Olhos, 2018
Vídeo (Video)
8'27''
Edição de 5 + 2 P.A. (Edition of 5 + 2 A.P.) -
Colhi uma folha de todas as espécies diferentes nesse pequeno jardim e as montei na superfície de um papel.
Uma infinidade de formas se tornou visível em "formas do jardim".
— Herman De Vries
A superfície do papel e o frame do vídeo são muito diferentes do espaço real e tridimensional. Compor nesses planos é sempre uma incógnita, um pouco como um exercício experimental. O movimento presente em algumas composições (ainda que sejam estáticas) quase sempre começa fora do atelier, com caminhadas que colocam o corpo e o olhar em movimento e instigam a percepção do espaço, a coleta de elementos, e a criação de novas narrativas. Não é um exercício de representação, mas de deslocamento e de relação com as coisas. Esses trabalhos não partem de um roteiro prévio, e por isso mesmo são potencializados pelo acaso.
Vivências com a dança contemporânea, com a improvisação do movimento e jam sessions com bailarinos, músicos e outros artistas durante os anos 1990 criaram impressões que até hoje influenciam não apenas a minha percepção espacial, mas também o meu olhar e processo de criação - a experimentação e a improvisação são desde então solos férteis em minha poética.
-
Em meu trabalho, me preocupo em não repetir algo já feito.
Minhas declarações são sempre anti-estilísticas.
A repetição forçada de um estilo leva à destruição da arte.— Jannis Kounellis
-
-
O tempo é agora não descarta a memória do passado, presente em nosso âmago e na formação da sociedade, e nem tão pouco o sonho por um futuro melhor. Mas afirma a potência do instante, do momento, e lembra o pulso e a efemeridade da vida. Tempo de espera indica a importância da pausa. A pausa que guarda outra dimensão temporal e é necessária para se adentrar o silêncio do desenho, da linha que dança, da textura monocromática, do rastro negro, da luz que penetra, da forma informe que dialoga com o ponto, e do conjunto que gera outro movimento.
Tudo se transformava.
As três pereiras, a colina, o outro lado do vale, os campos de colheita, as florestas. As montanhas ficavam mais altas, cada árvore e os campos, mais próximos.
Tudo o que era visível se aproximava de mim. Melhor, tudo se aproximava do lugar onde eu havia estado, pois eu já não estava mais ali.— John Berger
De fato, Steve Paxton e Nancy Smith se preocuparam com a sinergia do movimento ao criarem a modalidade de dança. Eles promoveram um aumento da consciência da energia ki ou chi entre os bailarinos, pois essa seria a base para que os corpos se movimentassem com leveza entre si e não se machucassem ao se chocar. Eles consideraram o momentum, a dimensão da presença e a consciência do movimento, o toque e a improvisação, como vias alternativas à normalização e como caminhos para o auto-conhecimento.
As reflexões sobre o tempo, a natureza, o movimento e a existência sempre me acompanharam e estiveram presentes em meus trabalhos. E ainda que os trabalhos aqui reunidos derivem dessa fonte de inspiração comum, isso não ocorre de uma forma racional ou deliberada. Cada um deles é motivado por situações distintas, e o que eles comungam é uma relação entre o campo estrutural e o sensível. Não cabe explicá-los individualmente, pois isso poderia encerrá-los num só ponto de vista, roubando-lhes o seu frescor e mistério. Além disso, acredito que o trabalho de arte não carece de justificativas. O que talvez caiba é passear por alguns de seus elementos.
-
A arte não é definível.
Toda definição sobre ela é uma limitação.
Mas, para mim, tem a ver com a formulação da consciência ou com o processo de me tornar consciente.
— Herman de Vries
-
Laura Belém
Transmutação, 2018
Conjunto de 15 colagens utilizando casca da árvore Campomanesia guazumifolia (nome popular 'sete-casacas') e confetes de papel pintados de guache
(Set of 15 collages using bark of the Campomanesia guazumifolia tree (popular name 'sete-casacas') and paper confetti painted with gouache)
30,5 x 22,5 cm cada (12 1/8 x 8 7/8 in each) -
-
Andar por aí e ao acaso encontrar uma casca de palmeira que se soltou; ela agora ganha outro sopro de vida ao cruzar a superfície de água verde-azulada na fotografia “Travessia” (2020). As folhas amarelas da cerejeira almejam o fluxo de ar na vidraça e comunicam o dentro e o fora em “Catavento” (2020) – um samurai em ataque, a asa da borboleta que encontramos no caminho, um deus que dança, um anjo exterminador, sua saliva, um jogo. Espaços de passagem e de transição, a potência do banal, do ordinário e do divino nas coisas.
Voa a folha áspera do Cerrado e, coberta por minério de ferro preto, deixa o seu rastro no papel Sumi-e amarelado. O peso do minério de ferro contrapõe-se à leveza do papel e nele imprime uma marca. As formas de papel carbono, amassadas e rasgadas à mão, pontuam essa escritura. “Entreato” (2020), como o título indica, sugere um intervalo, estado de suspensão, ou matéria que se desvanece e que se transforma.A mesma sinergia que existe entre os corpos que dançam pode existir entre as três mãos do vídeo “Entre as estrelas e seus olhos” (2018). A folha do papel agora flutua contra o firmamento azul. O dia se veste de noite, o fogo queima o papel, tudo o que nos separa e nos aproxima das estrelas, a folha cai como um véu.
As citações neste texto ressoam com o meu pensamento e poética; são como duetos numa existência efêmera. As referências vêm do mundo real, do som do trovão, do canto dos pássaros que por hora cessou, da poeira do minério, do farfalhar das folhas, do apito das cigarras e do barulho dos carros, da incerteza das coisas, da impressão que ficou de uma notícia de jornal, de uma anedota, da imaginação, do sonho, da dança silenciosa, e de tudo o que eu não sei.
Laura Belém
-
Laura Belém é bacharel em Artes pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (1996) e Mestre em Artes Plásticas pelo Central Saint Martins College of Art (2000 - Londres, Reino Unido). Participou em residências artísticas em diversas instituições, sendo as mais recentes: Art Residency Wildbad (2019 - Alemanha) e o Prêmio de Residência SP-arte Delfina Foundation (2018 - Reino Unido). Dentre outros prêmios foram recebidos pela artista, estão: CIFO Grants and Commissions Program / “Emerging Recipientes” da Cisneros Fontanals Art Foundations (2011 - E.U.A.), Prêmio CNI SESI Marcantônio Vilaça para artes plásticas (2011 - Brasília, Brasil) e Bolsa Pampulha do Museu de Arte da Pampulha (2004 - Belo Horizonte, Brasil).
Dentre as principais exposições individuais já realizadas destacam-se: 2018 - Porque olhamos a natureza num mundo conturbado (Celma Albuquerque Galeria de Arte - Belo Horizonte, Brasil); 2016 - História Curtas (Galeria Athena - Rio de Janeiro, Brasil); 2015 - Ilha Restaurante (Casa do Baile - Belo Horizonte, Brasil); Hoje tem Cine (Sesc Palladium - Belo Horizonte, Brasil); Anekdota (Capela Morumbi - São Paulo, Brasil); 2012 - The Temple of a Thousand Bells (York St Mary’s - York, Reino Unido); 2011 - A Outra Paisagem (Galeria Luisa Strina - São Paulo, Brasil); entre outras.
Dentre as principais exposições coletivas estão: 2020 - A exposição invisível: uma viagem sonora pelo século XX (Culturgest - Lisboa, Portugal); Artistas se divertem (Praça Adolfo Bloch - São Paulo, Brasil) ; 2019 - 3º Anto: O Verso (Museu do Louvre Pau Brazyl - São Paulo, Brasil); 2018 - Com o Ar Pesado Demais para Respirar (Galeria Athena - Rio de Janeiro, Brasil); 2017 - Tempo Presente (Espaço Cultural Porto Seguro - São Paulo, Brasil); 2016 - Transparência e reflexo (Museu Brasileiro da Escultura - São Paulo, Brasil); A spear, a spike, a point, a nail, a drip, a drop, the end of the tale (Ellen de Bruijne Projects - Amsterdam, Holanda); 2014 - Limited Visibility (CAM Raleigh Contemporary Art Museum - Raleigh, E.U.A.); Frestas Trienial de Artes (SESC Sorocaba - São Paulo, Brasil); 2013 - Amor e Ódio a Lygia Clark, (Zacheta National Gallery of Art - Varsóvia, Polônia); 2011 - Viewpoint (Cisneros Fontanals Art Foundation - Miami, E.U.A.); 2010 - The more things change (San Francisco Museum of Modern Art - São Francisco, E.U.A.); 2007 - VI Bienal de Artes Visuais do Mercosul (Porto Alegre, Brasil); 2005 - 51st Venice Biennale (Veneza, Itália); entre outras.