Ruan D'Ornellas — Lanche é lanche
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Apresentação
As mesas de xadrez das praças da região metropolitana do Rio de Janeiro não raro são percorridas por formigas. Quem quer jogar às vezes tem que enxotá-las do tabuleiro, já que é lá que elas sagazmente buscam aquele restinho doce de guaraná ou os grãos crocantes de farofa que caíram na hora em que mordemos o espetinho. Há que se ter cuidado ao recolher os descartáveis que alguém esqueceu de jogar na lixeira já abarrotada de pratos, latinhas e cocos: se não prestarmos atenção, podemos acabar jogando formigas no lixo, de tão escondidinhas que ficam entre as dobras do saquinho amarrotado de um cachorro-quente já devorado.
Não é surpreendente que, em muitas dessas praças, vejamos mais gente comendo do que jogando nas mesas de concreto em cujos tampos estão pintados tabuleirosde xadrez. Estrategicamente, os churrasquinhos da cidade estacionam ao lado delas e às vezes fundam longevas tradições gastronômicas, das quais também fazem parte carrinhos de batata frita, hambúrguer, churros, pastel, milho verde, pipoca, dentre outras delícias, lembrando-nos que não foi o shopping center que inventou a "praça de alimentação".
Em todos os cantos de uma cidade como o Rio de Janeiro, em praças, praias, estações de metrô, pontos de ônibus, portas de escolas…, diariamente se sustenta e se reinventa uma sociabilidade que resiste à escassez da pobreza e da fome, às afrontas da especulação imobiliária e às ameaças da gentrificação. Do raiar do dia — quando vendedores de café, pão de queijo e biscoito Globo estrategicamente se posicionam na porta de estações de trem ou circulam entre motos e carros em vias expressas como a Linha Vermelha — ao fim da jornada de trabalho, quando a luz alaranjada dos postes ilumina os carrinhos de sanduíche, yakissoba, tapioca, açaí ou pastel, produtores e vendedores de alimentos irrigam o tecido urbano com doses de afeto, aliança e cumplicidade diante do corre de cada um.
E, por mais insensato que possa parecer, há aqueles que ousam chamar essa rica cultura culinária de “baixa gastronomia”. Aos olhos preconceituosos de muitos dos que observam a arte culinária das ruas desde a janela fechada de restaurantes enjaulados por ar condicionado, essas práticas alimentares seriam reprováveis por argumentos deveras elitistas que — negligenciando as implicações sociais, urbanas e raciais desse popular patrimônio culinário — reduzem o debate a questões nutricionais ou de higiene. Como diz um famoso meme, se “ecologia sem luta de classes é jardinagem", nutrição em justiça alimentar é decerto contagem de calorias.
Como um trabalhador das artes que está sempre no corre, há algum tempo Ruan D’Ornellas passou a observar cuidadosamente a sua própria cultura alimentar, transferindo algumas horas de seu interesse por pintura, cerâmica, desenho ou exposições para trailers, estufas de lanchonetes, lixeiras, carrinhos de ambulantes. Se parece inevitável que, como pintor, Ruan tenha se interessado pelas texturas, cores, composições e ritmos desse universo gastronômico, as obras reunidas em Lanche é lanche nos revelam que foi também como conservador-restaurador que o artista passou a lidar com joelhos, coxinhas, guaravitas, cafés, cachaças, pizzas, misto quentes, ovos cozidos, bolos, ketchups.
Graduado em pintura pela Escola de Belas Artes da UFRJ (2013), é preciso pontuar que, nessa mesma instituição, Ruan D’Ornellas se interessou pelo campo da conservação, dando sequência aos estudos de restauração que antes havia iniciado na Biblioteca Nacional. Essa não é uma informação de alguma forma inócua, mas uma importante chave de leitura da obra desse artista de profundo interesse pelos ofícios do fazer manual. Virtuoso em técnicas como a pintura, a cerâmica ou o desenho, Ruan não é apenas um especialista em certas linguagens da arte, senão um devotado estudioso das materialidades e processos físico-químicos da vida: da ourivesaria à mineralogia, da botânica à tatuagem, da anatomia ao têxtil. Sua consciência política e ética acerca das materialidades inscreve sua prática artística na vasta história das tradições artífices que, em sua exposição recente, desdobram-se como uma investigação dos fazeres da culinária popular.
Fazer uma coxinha, uma escultura de cerâmica ou um tabuleiro de xadrez convergem em Lanche é lanche. Em seu encontro com a cultura gastronômica das ruas, Ruan D’Ornellas dobra sua aposta na inteligência das mãos e dos ofícios, combinando o saber-fazer de uma boa fritura aos saberes que constituem uma pintura bem-feita. Não há, nesse gesto, uma celebração tecnicista da arte, mas a politização das técnicas e materiais que a estetização por vezes tende a esvaziar. Afinal, forma sem consciência histórico-política da técnica é branding.
Nessa direção, como já anuncia o título recursivo e tautológico da exposição, uma das operações de Ruan D’Ornellas em Lanche é lanche é jogar com a mimese. Como um artista cuja formação passou pelo exercício da restauração, sua relação com a ideia do “original” constitui uma importante força desse conjunto de obras. Se, de um lado, a vocação naturalista de sua pintura tangencia as discussões do papel da arte diante da referencialidade do “real", de outro, é especialmente nas cerâmicas e demais objetos da mostra que vemos Ruan criar a partir da mimetização. Emulando a metalização de estufas de alimentos e ou a concretude cimentícia de mesas de xadrez, o artista combina materiais como isopor, cerâmica e tinta spray para teatralmente fingir que suas obras seriam como a culinária popular, ainda que apresentadas no equivalente artístico dos restaurantes confinados ao ar condicionado — o cubo branco.
Pastéis de palmito inicialmente modelados em argila, posteriormente queimados em fornos cerâmicos e, então, pintados com tinta metálica, aludem às estéticas cromadas que integram o imaginário capitalista das práticas e produtos aditivados, ou de luxo — o persistente brilho da moeda, o “café da manhã dos campeões”, a celebração à máquina ou a ícones da arte ou da moda, as estruturas das cadeiras projetadas por Mies van der Rohe, as correntes de metal que pendem das bolsas da Chanel… Comodificadas como arte, coxinhas não são somente estetizadas por Ruan D’Ornellas. Mais do que isso, traindo ontologicamente o que aparentam ser do ponto de vista da imagem, seus salgados escultóricos transformam as nuances técnicas de seu próprio fazer em posição política no seio da arte. Para criar sua armadilha de aparências, o artista aprende com os tensionamentos que a economia do lanche produz face ao monopólio burguês dos meios de produção: diante da Batata de Marechal Hermes, a McDonald's que lute.
Estamos, assim, diante de um artista cuja virtuosa maestria para lidar com a inebriante beleza das matérias, cores, formas e composições não é da ordem do escapismo mas, ao contrário, constitui-se como uma posição política em si mesma. Enquanto a segunda metade do século passado viu emergir uma arte que fez o elogio à padronização social do capitalismo por meio do alimento industrializado — do que é ícone a afirmação de Andy Warhol de que “uma Coca é uma Coca, e não há dinheiro no mundo que consiga te dar uma Coca melhor” —, ao avivar a manualidade e os ofícios entre a arte e a comida, Ruan D’Ornellas faz, de sua prática artística, uma investigação acerca de direitos e acessos às tecnologias sociais. Lanche é lanche é, desse modo, palco para debates como o direito à cidade, à segurança alimentar e à saúde, provocando-nos a valorizar, mas também a aprender a diferenciar, o inigualável sabor da maionese verde da “tia do lanche” de seu corre e precariedades diárias.
Pois — nunca é demais lembrar — para estar às 7h na porta da Faculdade Mackenzie, essa “tia” acordou às 4h para misturar as ervas ao seu famoso molho, sair de sua casa em Saracuruna às 5h e cruzar Gramacho, Duque de Caxias, Vigário Geral e Penha num trem da SuperVia que a leva à Central, onde pega a linha 1 do metrô até chegar já cansada em Botafogo, carregando sua chapa, caixa térmica, molhos, pão, queijo e o característico cheirinho de alho que anuncia a maionese verde que ao longo dos anos se tornou a preferida dos estudantes da Zona Sul do Rio de Janeiro.
Clarissa Diniz
Vistas da exposição
Obras
![Ruan D'Ornellas A pressa era tanta que não deu tempo, 2025 Tinta acrílica sobre tela [Acrylic paint on canvas] 200 x 150 cm [78 3/4 x 59 in]](https://artlogic-res.cloudinary.com/w_800,h_800,c_limit,f_auto,fl_lossy,q_auto/artlogicstorage/galeriaathena/images/view/9afe55fd8a59e34dffdd094d1027c692j/galeriaathena-ruan-d-ornellas-a-pressa-era-tanta-que-n-o-deu-tempo-2025.jpg)