Desali / Rafael Rocha — Banho de sol
Banho de Sol, terceira individual de Desali na Galeria Athena, realizada em parceria com Rafael Rocha, é o desdobramento e também o encerramento simbólico de um ciclo iniciado com a exposição Quebra-Demanda, de 2022. Naquele momento, Desali transformou a Sala Cubo da Athena em um espaço de resistência e convívio coletivo, onde o gesto artístico se confundia com a criação de redes de solidariedade. A formação do coletivo 18 do Front, coordenado por Desali, Rafael Rocha e Yan da Silva Costa, foi o motor de uma experiência que ultrapassava o âmbito da galeria: ao longo da exposição, oficinas reuniram artistas e visitantes de diferentes lugares, convertendo resíduos cotidianos em obras de arte, que por sua vez eram trocadas por cestas básicas e produtos de higiene destinados a famílias de pessoas encarceradas. Em Quebra-Demanda, arte e vida se fundiam em um mesmo gesto, e o espaço expositivo assumia o papel de oficina, laboratório e trincheira.
Em Banho de Sol, Desali e Rafael Rocha deslocam o olhar desse campo da ação coletiva para a dimensão íntima e poética que emerge do cotidiano da sobrevivência. O título, tomado da expressão que designa o breve momento em que pessoas privadas de liberdade têm acesso ao ar livre, traz consigo uma dupla carga simbólica: é tanto o respiro mínimo em meio à privação quanto a lembrança de que a liberdade, em tais condições, se dá em doses racionadas, medidas e controladas. A exposição se constrói a partir desse ponto de tensão, em que o gesto artístico se debruça sobre as pequenas brechas de contato com o mundo exterior, revelando nelas não só a precariedade, mas também a vitalidade da invenção e da resistência.
O vídeo que ocupa uma das paredes da sala, realizado em parceria entre Desali e Rafael Rocha, é testemunho e fabulação, registro e poesia. Nele, as vozes dos “guardados”, como são chamados popularmente os encarcerados, se entrelaçam à narrativa da entrega doskitss, conformando um retrato íntimo da mobilização do 18 do Front e da dimensão afetiva desse gesto solidário. O filme não se limita a documentar: ao contrário, expõe a densidade simbólica que se acumula na vida precária, transformando imagens de clausura em lampejos de dignidade, e sugerindo que a arte pode ser, também, respiração partilhada.
A instalação que ocupa a sala amplia essa atmosfera. Estruturas que remetem a grades de prisão dividem o espaço com objetos improvisados que fazem parte do repertório da vida carcerária: bitucas de cigarro, pedaços de papel higiênico transformados em pavios, pequenos espelhos usados como sinais entre celas. Esses elementos, ao invés de serem lidos como restos, funcionam como testemunhos da engenhosidade de quem insiste em criar meios de comunicação e de vida mesmo em meio à reclusão. São fragmentos do cotidiano que, transpostos ao espaço da arte, não perdem sua crueza, mas ganham a força de símbolos: vestígios de uma resistência que se dá no detalhe, no gesto improvisado, na faísca de sobrevivência.
As fotografias que integram a exposição deslocam, por sua vez, um dos repertórios imagéticos mais arraigados da tradição ocidental. Ao encenarem ícones da visualidade católica, pessoas comuns assumem o centro da cena, transformando-se em portadores de transcendência e reverência simbólica. A sacralidade, nesse deslocamento, já não é privilégio de figuras canonizadas, mas atributo de sujeitos invisibilizados, que ganham peso histórico e dignidade poética. Entre a reverência e a vulnerabilidade, entre a encenação e a vida real, essas imagens tensionam o lugar do sagrado, devolvendo-o àqueles que a história muitas vezes relegou às margens.
Ainda que o foco de Banho de Sol seja a dimensão íntima da sobrevivência, a exposição não abandona a lógica participativa que atravessa a trajetória de Desali e que marca também sua parceria com Rafael Rocha. Cavaletes espalhados pela sala apresentam obras do artista e de integrantes do coletivo, mantidas abertas à intervenção do público. Essa abertura reafirma que a prática artística não se encerra em si mesma, mas se prolonga no gesto de quem aceita o convite à criação compartilhada. O espaço da galeria permanece, assim, como lugar de troca e de diálogo, em continuidade com a experiência de Quebra-Demanda, mas agora voltado para a elaboração de um testemunho mais íntimo e sensível.
Se a exposição anterior se organizava em torno da energia transformadora do coletivo, Banho de Sol concentra-se no que resiste depois do gesto comunitário: no respiro mínimo que mantém a vida, na necessidade vital de contato com o exterior, na sobrevivência que se afirma apesar das grades. É nesse ponto que se revela a força da prática de Desali e Rafael Rocha: ao articular política e poética, denúncia e lirismo, a obra não só expõe as contradições sociais brasileiras, mas também insiste em abrir brechas de luz em meio à escuridão. Banho de Sol é, assim, tanto a conclusão de um ciclo quanto um manifesto de continuidade, lembrando-nos de que a arte pode ser não apenas linguagem ou reflexão, mas também ferramenta de fôlego, espaço de cuidado e gesto de esperança.