Apresentação

Começar pelas pedras

 

 

Esse lajedo é muito grande de pedrinha miúda[1]

 

 

Distintas culturas celebram o início de uma construção através da “abertura de terra”, cerimônia que consiste em cavar um pequeno buraco sobre o terreno e depositar a pedra fundamental, bloco que assenta a fundação do edifício por vir. Desde então mora na pedra a fonte de uma história que por ali escoará. Certas construções podem não partir da materialidade de uma rocha, mas todas começam na contração de um gesto com um elemento concreto que resguarda a força e a forma deste espaço em gestação. Mas esta é uma rua de mão dupla, pois antes de construirmos o espaço e nele instalarmos nossos propósitos, ele mesmo nos transforma e dirige, delimitando as linhas e pontes pelas quais traçamos nossos passos e desenhamos os caminhos. Assim, para conhecer a própria história talvez seja necessário voltar ao território e perguntar pela pedra que começou a nossa cidade.

 

A pesquisa visual de Renata Leoa, nascida e criada em Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro, abre as janelas do espaço e nos leva a acompanhar o desdobrar da vida dos sujeitos na superfície de concreto que recobre as ruas e fachadas do Rio. Como em um processo de erosão, a história e os modos de convívio e habitação da cidade desenham sobre a pedra linhas que arquitetam vidas – uma porta, uma viela e um beco surgem abrindo frentes a um destino que pede passagem, escrevendo o tempo no espaço,  ecoando o geógrafo Milton Santos, para quem “o espaço é uma acumulação desigual de tempos”[2]. Mora nesta geografia urbana pintada por Leoa a memória de tempos que se sobrepõem, compondo uma história que se escreve com a tinta, as pedras e as materialidades que formam o espaço. 

 

Vemos, por exemplo, na tela “Cobrança ancestral”, de 2025, a frente de uma ocupação no bairro carioca da Gamboa, composta por um coletivo de janelas que se abrem como paisagens íntimas. A pintura evoca em gesto simbólico toda uma questão crítica em torno das desiguais formas de distribuição e ocupação do espaço da cidade, evocando, no recorte visível dos lares na fachada, uma pergunta sobre quais histórias e sujeitos podem encontrar espaço para se escrever, e a que custo tal direito é acessado. A cidade, grande lajedo que também segrega e delimita, se revela na pintura da artista não enquanto conjunto de grandes prédios, mas como coletivo de “pedrinhas miudinhas”, pequenos elementos que formam e reforçam a existência de um agrupamento maior. Tal termo também é mobilizado na literatura para nomear os distintos sujeitos e histórias que compõem o mundo e nele criam veredas entre as grandes avenidas, encantando a vida comum em uma trama de saberes e modos de convívio desviantes aos grandes rochedos. É justamente na pedra miúda que o tempo fez mais história, por onde passou encurtando suas bordas, nela habita uma ancestralidade materializada em forma que não cessa de se transmitir.

 

Podemos atirar pedras, encontrá-las no meio do caminho, nelas alicerçar uma casa, fazer romper uma revolução, e há até mesmo quem leia o futuro nas pedras preciosas. Começar por elas sugere voltar e contar outra vez a história de uma casa, rua, bairro, lajedo, cidade ou mesmo de um país. O Rio de Janeiro, espaço trabalhado por ambos artistas em algumas das obras aqui expostas, tem nos principais capítulos de sua história uma série de acontecimentos travados sobre as pedras; alguns de seus pontos turísticos são justamente demarcados no topo de rochas, e, paralelamente, o cerne de sua urbanização envolve dolorosos episódios travados em cima delas, como o arrasamento dos morros do Castelo e Santo Amaro, processos associados a uma reforma citadina calcada em práticas higienistas, questão fundante à parte das obras aqui apresentadas por Desali.   

O artista, crescido no Bairro Nacional, em Contagem, Minas Gerais, também encontra na vivência do território urbano o princípio de sua poética. As ruas por onde circula e os trajetos da periferia ao centro compõem diretamente as linhas e frases que conformam seus trabalhos. Tanto no modo de se relacionar com o espaço quanto na escolha das materialidades e suportes de criação, Desali pratica uma recusa às supostas neutralidades, evidenciando o palimpsesto de passado do qual se forma o presente. O caminho traçado está arado pelos pés e narrativas de quem antes passou, assim como as bases de suas pinturas, – peças e tábuas de madeira reaproveitadas – que participaram de outras histórias nos seus usos prévios, por vezes como caixotes de frutas e legumes. Valendo-se desse comentário que alude à alimentação e também à troca e reciclagem, podemos pensar em parte das obras do artista na exposição, trabalhos que integram um processo de pesquisa sobre racismo estrutural e práticas higienistas, e recuperam a memória dos “Tigreiros”, escravizados responsabilizados pelo trabalho insalubre de coleta dos dejetos no Brasil do século XIX.

 

Se uma das pinturas de Renata Leoa parte do bairro da Gamboa, a alguns minutos de distância, do outro lado da Central do Brasil podemos localizar a Rua do Senado, aberta em 1796 e posteriormente pavimentada com paralelepípedos de pedra. O local se tornou um denominador importante para a pesquisa de Desali, que em 2024 realizou  uma residência no Solar dos Abacaxis, instituição situada na mesma rua,  e desenvolveu a série “Tigreiros Granada”, na qual revisita o passado histórico brasileiro propondo trabalhos que expõem as marcas do racismo estrutural e das práticas higienistas associadas à Granado, perfumaria também sediada na Rua do Senado. Retomando os legados da escravidão, a série de obras ressignifica narrativas históricas e reinterpreta imagens, implementando, concomitantemente, uma ação educativa chamada “Chão do Troca”, que tanto auxiliou na coleta de plástico nos arredores do espaço da residência quanto ativou de forma prática a questão da troca, do resíduo e do reaproveitamento de materiais. Sobre tal ação educativa o artista apresenta aqui um diário com a documentação de seu desdobramento.

 

Terminando também com as pedras, podemos pensar que em ambos artistas o gesto de retorno às imagens e histórias da cidade busca justamente as narrativas não pavimentadas, estradas onde o caminho ainda se faz sobre um solo vivo. Se a pedra aparece na literatura como metáfora para o problema no meio do caminho, a alternativa transgressora se dá na inversão dos termos, ecoando o dito popular e as obras de Leoa e Desali,  é preciso fazer  o “caminho das pedras”, aquele que resguarda uma alternativa possível para prosseguir e abrir a terra às outras construções possíveis. 

 

Lucas Alberto



[1] Trecho de ponto cantado para boiadeiros, transmitido oralmente e gravado por distintos intérpretes

[2] SANTOS, M. Por uma geografia nova: da crítica da geografia a uma geografia crítica. São Paulo: Hucitec, 1986, p. 209

Vistas da exposição
Obras