Gustavo Prado: Intermédio

Apresentação
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
     Pilar da ponte de tédio
     Que vai de mim para o Outro.

— Mário de Sá-Carneiro
Lisboa, fevereiro de 1914
 
 
Ao caminhar pela Rua Doutor Melo Alves, somos imersos na dinâmica cotidiana da cidade: passos apressados, veículos que se cruzam, rostos em movimento que raramente se encontram. Nesse cenário urbano, a galeria Athena se insinua com sua fachada de vidro, logo apresentando  "Intermédio", de Gustavo Prado, que, como uma grande vitrine, interrompe o fluxo da rua. A superfície reflete e distorce o mundo ao seu redor, convidando-nos à reflexão. O vidro, ao mesmo tempo que separa dentro e fora, revela a fronteira e cria uma experiência compartilhada entre o espaço público da rua e a galeria.
 
A galeria se configura como um espaço de transição, tanto físico quanto proposital. Sua fachada com recortes espelhados não apenas reflete o movimento do entorno, mas cria camadas de barreiras e aberturas que estimulam a interação compulsória. Aqui, escolhemos o que queremos ver, ignoramos o que não nos atrai, vivendo simultaneamente o exterior e o interior, rodeados pela rua, calçada, grade e as contenções do entorno. Gustavo Prado insere suas obras em um diálogo com a arquitetura, instigando distintas camadas de clareza e claridade visual.
 
Adentramos esse jogo de espelhos e reflexos, que nos transporta para outro espaço-tempo delimitado pelas paredes da exposição. As obras, compostas por espelhos convexos, são dispostas pela galeria de maneira a criar diálogos entre elas, a arquitetura e o público. Não há uma imagem única, mas uma pluralidade de imagens fragmentadas, distorcidas e sobrepostas. O espectador se vê simultaneamente como sujeito e objeto, observado pela própria imagem que se multiplica em ângulos inesperados. Nesse jogo, o "eu" deixa de ser fixo, permitindo a emergência de múltiplos "eus", ou até mesmo de Outros "eus".
 
As camadas veladas ou pintadas nos espelhos adicionam outra dimensão ao trabalho. Referências ao cânone da arte – como as repetições de Sol LeWitt e as formas cortantes de Carmen Herrera ou dançantes de Hélio Oiticica – interrompem a transparência, obscurecendo a visão e frustrando a tentativa de ver tudo. Essa incompletude não é apenas formal, mas também conceitual. Assim como não conseguimos nos compreender por completo, a obra, por tanto, não se completa, estando em constante reorganização, sempre se propondo a algo novo.
 
Essa estrutura também sugere uma inconstância na autoria da obra. As obras deixam de ser criações exclusivas do artista, tornando-se um campo aberto que se desenrola a partir do olhar e da interação do público. O espectador, ao participar ativamente, se torna coautor, já que sua presença e percepção são essenciais para que a obra se complete. Os espelhos, ao distorcer e refletir o ambiente, não são estáticos, mas se transformam em reflexos do espectador, reconfigurando constantemente o significado da obra de acordo com sua posição no espaço e no tempo.
 
Essa dinâmica de coautoria é reforçada pela materialidade das obras. Os espelhos convexos, usados em pontos urbanos como esquinas ou saídas de garagem, na série *Ponto Cego*, e as eletrocalhas, parafusos e porcas, presentes na série *Medida da Dispersão*, são elementos industriais comuns, facilmente encontrados em lojas de material de construção. Esses materiais desconstroem a noção de autoria tradicional, sendo acessíveis a qualquer um. Além disso, a construção física das obras, com base em elementos encontrados na cidade, promove um constante diálogo com o contexto da cidade. Assim, a obra deixa de ser uma criação exclusiva e se transforma em um reflexo do trânsito contemporâneo – um reflexo de nós mesmos e da cidade que habitamos, que nos forma e que constantemente nos reconfigura.
 
A exposição, portanto, se propõe como um campo de situações, em que o espaço participa ativamente da experiência. A arquitetura e sua relação com o entorno interferem no que percebemos e em como nos posicionamos. Não é possível observar as obras sem perceber o local em que estamos. Os espelhos, em vez de fornecer respostas definitivas, revelam múltiplas versões possíveis de nós mesmos e de nosso entorno, questionando nossa identidade no espaço e no tempo. A galeria, longe de ser um espaço neutro, amplifica essa reflexão, tornando-se uma interlocutora. A experiência da visita, nesse sentido, é um recorte no tempo, uma das muitas possibilidades de história que podem se desdobrar neste espaço específico. Como Mário de Sá-Carneiro já disse: "sou qualquer coisa de intermédio", uma identidade fragmentada e transitória, formada no encontro entre o espaço, as obras e o momento presente.
 
Gabriela Davies 
 
Vistas da exposição
Obras