Era uma vez… — Um rei! — logo dirão os meus pequenos leitores. Não, crianças, erraram. Era uma vez um pedaço de madeira. —
Carlo Collodi — As Aventuras de Pinocchio
1. De quando objetos supostamente inanimados revelaram suas sentimentalidades
De fato, logo pegou o machado afiado para tirar a cortiça e desbastá-la; mas ao se preparar para dar a primeira machadada, manteve o braço no ar, pois escutou uma voz bem baixinha: — Não me bata muito forte! (...)
Pegou novamente o machado e lascou um belo golpe no pedaço de madeira. — Ai! Você me machucou! — gritou a mesma vozinha.
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As lascas e raspas que restaram dos golpes contra a madeira também falavam - e seguiram chorando no chão do ateliê. Enfastiado e exausto, o mestre as recolheu como lixo. Ao invés, porém, de despejá-las, pregou-as uma sobre as outras - e pendurou o lixo na parede. Aquelas que ainda teimavam em restar, ele as comeu.
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O desejo era preservar o que havia sido rejeitado - refazer em nova forma as partes sacrificadas para a estrutura de outra arquitetura - em uma antítese da arte do Kintsugi - no lugar de emendar com ouro para restaurar a forma que se partiu, encontrar o ouro na perda da forma, como uma contra-técnica que destrói para recriar - e preservar coisa alguma.
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O mestre, todo contente, foi logo pegar sobre a bancada aquele pedaço de madeira que lhe causou tanto medo.
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É trabalho do pintor ouvir o riso ou o choro da pintura. Ouço seu vozerio o tempo todo. Muitas delas gritam de medo antes das operações de corte. Há uma parte sádica nas operações, um prazer nos cortes, nas mutilações, nas amputações. Há um prazer ainda maior quando os cortes são limpos, e raiva quando tenho que refazer cortes sujos.
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Mas antes de ser entregue ao amigo, o pedaço de madeira lhe deu um safanão e escapou com violência de suas mãos. Foi bater com força nas canelas fininhas do pobre Geppetto.
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Que tem, afinal, uma maçaneta a dizer? O que pensa uma escrivaninha, um botão de blusa? De que se recorda um alfinete ou um pneu? Como compreender, fora das fronteiras da literatura ou das infinitudes da loucura, que os objetos mais desencantados, como um mero pedaço de madeira, podem apresentar temperamento, memória, sentimento ou tesão?
2. De quando as pinturas passaram a se assemelhar com nuvens e as nuvens com elefantes dormindo ou esmagando cidades
Tais restos, quando reunidos, formaram uma estranha xícara, que passou a nos espiar feito nuvens que desenham um rosto conhecido (encarnando, no tecido da vida desperta, o pesadelo mais perturbador) ou como elefantes dormindo.
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Os elefantes, dormem, em média, por apenas duas horas, e são capazes de permanecer sem repouso por até 48 horas, o que os torna os mamíferos mais insones que existem.
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Eles quase sempre dormem de pé, só se deitam a cada três ou quatro dias, e são capazes de sonhar.
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(a vida é uma máquina velha
que sacode cospe urra sempre
prestes a explodir fumaça
e que precisa de espaço pra funcionar
tão antiga que já nem a
reconhecemos como máquina
parece um bicho uma fera amorfa
mancha no chão um peixe de pano
um elefante derretido
cem anos ou muito menos)
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— Porque você é um boneco de pau e, o que é ainda pior, tem a cabeça dura. Ao ouvir essas últimas palavras, o Pinocchio saltou enfurecido, pegou no banco um martelo de madeira e o atirou no Grilo Falante. Talvez não acreditasse que pudesse acertá-lo, mas por azar atingiu-o bem na cabeça, tanto que o pobre Grilo teve fôlego apenas para um último cri-cri-cri e depois ficou lá, esborrachado e grudado na parede.
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— Olhões de madeira, por que me olham assim? Ninguém respondeu. Então, depois dos olhos, fez o nariz. Nem bem terminado, o nariz começou a crescer: e cresceu, e cresceu, e cresceu. Em poucos minutos já era um narigão que não terminava nunca.
3. De quando as máquinas começaram a reclamar, choramingar, espernear, se atirar no chão, derrubar tudo ao redor, sentir vergonha, repensar seus atos e implorar perdão
à noite as máquinas choram
derramam suas sentimentalidades
por entre os vãos dos ferros
fios botões telas placas chips
lágrimas vazam das máquinas
quiçá um suspiro há de se ouvir
finalmente agora podem
não precisam mais ser calculistas afinal
aliviadas
à noite as máquinas choram
enquanto bichos
maquinam
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um quebra-cabeças que não encaixa, uma competição sem tarefa, um jogo que não funciona, uma disputa imóvel, um tabuleiro ilimitado, um motor que jamais dispara, uma colagem de criança sem formato ou função: caixas tingidas por misturas nauseantes e cobertas por potes, copos e fios colados desenhando uma topografia tão evidente quanto indecifrável.
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Cérebro no peito
Coração na cabeça
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Quando a palma da mão escorou todo o peso do corpo despencado em uma queda da própria altura - e o úmero se rachou em uma linha contínua que se espalhou até o rádio como um rio ou uma cordilheira - o som que ecoou na caveira foi o estalar de um compensado esmigalhando suas muitas camadas.
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Resolvi fabricar uma bela marionete de madeira: mas uma maravilhosa, que dance, lute esgrima e dê saltos mortais. Com ela, quero girar o mundo e arrecadar um bom pedaço de pão e um copo de vinho. Que tal?
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Pinocchio fechou os olhos e fingiu dormir. Enquanto o boneco fazia de conta, Geppetto, com um pouco de cola dissolvida dentro de uma casca de ovo, grudou tão bem os dois pés no lugar que não se enxergava a marca da junta.
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Cérebro no pé
coração na cabeleira
4. De quando todas as cores de todas as coisas mudaram levemente de tom - e o mundo passou a parecer um outro mundo sobreposto ao mundo que antes conhecíamos
As cores que espirraram a cada golpe e que sobraram indesejadas após concluída a marionete (e a ressureição) escorreram lentamente até as bordas da mesa, correram pelos sulcos do solo, escalaram as paredes até as janelas, de onde se lançaram em fuga e nunca mais puderam ser adestradas.
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Sonhava com jardins suspensos em cima de prédios comerciais, trepadeiras milagrosas tingindo as paredes dos horrorosos edifícios do centro, flores pintando cores que não existem e brotando nos canteiros das avenidas - como se as cores pudessem oferecer um novo e maior sentido para a vida.
Mas os sonhos não pararam por aí. Quando terminou de colorir os hiatos das cidades, novos pigmentos avançaram pelas ruas para depois tingirem as escadas dos prédios, as salas e quartos dos apartamentos, as paredes dos escritórios, os estacionamentos, até que não restasse mais nada intocado: sobre as camas das casas, nos vãos de elevadores, de dentro das privadas, nos banheiros públicos, detrás dos balcões das lojas e bares, nos bolsos das camisas, pelas narinas dos bules, das gavetas de talheres, até que não havia mais qualquer lugar inocentado dos novos pigmentos. Não havia espaço mais para nenhuma pessoa ou animal ou edifício ou governo ou plano amor. Só havia cores. E esse sonho lhe fez feliz.
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O futuro no cinema do passado é definido pelos materiais, pela lisura das superfícies, pelos ângulos e temperamentos das coisas, e pelas cores.
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Depois, as cores foram varridas, recolhidas e jogadas fora como os restos de um carnaval que acabou - como adornos que, instantes antes, representavam a materialização da festa, do melhor espírito humano, e que agora quedavam como as sobras mais indesejadas, a serem retiradas de toda vista o mais rápido possível, e lançadas em um incalculável monte de lixo cromático.
5. De quando o boneco levantou e andou
Aconteceu que Pinocchio ficou doente. Sua irmã, era a mesma que derramara perfume sobre o Senhor e lhe enxugara os pés com os cabelos.
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Geppetto respondeu: "O dia não tem doze horas? Quem anda de dia não tropeça, pois vê a luz deste mundo. Quando anda de noite, tropeça, pois nele não há luz". Depois de dizer isso, prosseguiu dizendo-lhes: "Nosso amigo Pinóquio adormeceu, mas vou até lá para acordá-lo".
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Cérebro no copo
Coração no cinema
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Geppetto, outra vez profundamente comovido, foi até o sepulcro. Era uma gruta com uma pedra colocada à entrada. "Tirem a pedra", disse ele. Disse a irmã do morto: "Senhor, ele já cheira mal, pois já faz quatro dias".
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A sutura da pintura dá acabamento e coesão à marionete de restos.
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O morto saiu, com as mãos e os pés envolvidos em faixas de linho e o rosto envolto num pano. Disse-lhes Geppetto: "Tirem as faixas dele e deixem-no ir". Muitos dos que tinham vindo visitar Maria, vendo o que Geppetto fizera, creram nele.
6. De quando as pinturas foram sacrificadas pelo bem da humanidade e o verbo se fez carne e as madeiras foram felizes para sempre
Que te faremos para que o mar se acalme? Porque o mar ia se tornando cada vez mais tempestuoso.
E Pinocchio disse: Levantai-me, e lançai-me ao mar, e o mar se vos aquietará; porque eu sei que por minha causa vos sobreveio esta grande tempestade. Entretanto, não podiam, porquanto o mar se ia embravecendo cada vez mais contra eles.
Então clamaram ao Senhor, e disseram: Ah, Senhor! Nós te rogamos, que não pereçamos por causa da alma desta marionete.
E o Pinocchio, mais ligeiro do que nunca, ia em frente como uma bala de fuzil. Estava quase chegando ao rochedo. Mas levantaram a Pinocchio, e o lançaram ao mar, e cessou o mar da sua fúria.
Temeram, pois, ao Senhor com grande temor; e ofereceram sacrifício ao Senhor, e fizeram votos. Preparou, pois, o Senhor um grande peixe, para que tragasse a Pinocchio.
O monstro o alcançou. Aspirando, bebeu o pobre boneco como se fosse um ovo de galinha, o engoliu com tanta sofreguidão e avidez que o Pinocchio, ao ser sugado para dentro do corpo do tubarão, levou um tranco tão forte que ficou desmaiado por meia hora. E esteve Pinocchio três dias e três noites nas entranhas do peixe.
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O esqueleto no armário encontrava-se exposto - não como um segredo revelado, mas de fato como uma fratura que atravessa a pele - ossos que revelam a estrutura e, assim, a destroem.
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O PINOCCHIO REENCONTRA, NA BARRIGA DO PEIXE... QUEM ELE REENCONTRA? LEIAM ESTE CAPÍTULO E SABERÃO!
Quanto mais avançava, mais a claridade aumentava e se definia. De tanto caminhar, finalmente chegou. E o que encontrou? Dou a vocês mil chances para adivinhar! Encontrou uma mesa posta, com uma vela acesa enfiada em uma garrafa de vidro verde e, sentado à mesa, um velhinho de cabelo todo branco como se fosse de neve ou de chantili. Ele mordiscava alguns peixinhos vivos, tão vivos que às vezes escapavam da sua boca.
— Ai, papai querido, finalmente o reencontrei! Agora eu não deixo mais você, nunca mais, nunca mais!
— Então meus olhos não estão me enganando? — replicou o velhinho, franzindo os olhos — É você mesmo, o meu querido Pinocchio?
— Sou! Sou eu! Sou eu mesmo! O senhor já me perdoou, não é mesmo? Porque tu me lançaste no profundo, no coração dos mares, e a corrente das águas me cercou; todas as tuas ondas e as tuas vagas têm passado por cima de mim.
As águas me cercaram até à alma, o abismo me rodeou, e as algas se enrolaram na minha cabeça. Mas eu te oferecerei sacrifício com a voz do agradecimento; o que votei pagarei. Do Senhor vem a salvação.
Falou, pois, o Senhor ao peixe, e este vomitou a Pinocchio na terra seca.
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Os panos sobre as tetas
As tangas sobre as picas
Não nos fizeram mais felizes
Ao que tudo indica
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Naquela noite, o Pinocchio, em vez de ir dormir às dez, trabalhou até soar meia-noite! E, em vez de produzir oito cestos de vime, fez dezesseis. Depois foi para a cama e dormiu. Em seu sonho, pareceu ver a Fada, toda bela e sorridente que, depois de lhe dar um beijo, disse:
— Muito bem, Pinocchio! Por causa de seu bom coração, eu perdoo você por todas as molecagens que aprontou até hoje. Tenha juízo no futuro e será feliz.
O sonho terminou aí, e o Pinocchio acordou com os olhos arregalados. Agora imaginem sua surpresa quando, ao despertar, percebeu que não era mais um boneco de madeira, mas sim um menino como todos os outros. Foi se olhar no espelho e já não viu mais a imagem de sempre, do boneco de madeira, mas a figura vivaz e inteligente de um bonito jovem de cabelos castanhos, olhos azuis e com um ar alegre e festivo.
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a noite e o dia
fios, madeira, tinta, lâmpada
baixa tecnologia
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— Esta abrupta mudança na nossa casa é unicamente mérito seu — disse Geppetto.
— Por que mérito meu?
— Porque os garotos, quando são maus e se tornam bons, têm a virtude de dar um aspecto novo e risonho até no interior de seus lares.
— E o velho Pinocchio de madeira, onde estará escondido?
— Olha ele ali! — respondeu Geppetto, indicando uma grande marionete apoiada em uma cadeirinha, com a cabeça virada para um lado, os braços pendentes e as pernas cruzadas e dobradas nos joelhos. Parecia um milagre que parasse de pé!
O Pinocchio virou-se para olhar e, depois de algum tempo, disse para si mesmo, com um enorme orgulho: “Como eu era ridículo quando era uma marionete! E agora, como estou contente em ter me transformado em um menino de verdade!”
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- um crânio apoiado em uma tíbia um fêmur encaixado em úmero uma falangeta enroscada em um rádio - o nariz no vão dos lábios o queixo na cava dos olhos um seio em cada sovaco os pés no meio das pernas o ouvido na curva da mão -
mais uma vez, Geppetto recomeça seu elefante.
[1] incluindo trechos de As aventuras de Pinocchio, de Carlo Collodi, da Bíblia e de textos originais de Rafael Alonso, editados e modificados por Vitor Paiva