Ayla Tavares: Coisas que se movem lentas
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Apresentação
Um passo a frente e eu já não estou no mesmo lugar
Há pouco mais de um ano, vimos Earendelpela primeira vez. A imagem da estrela mais distante já conhecida foi captada pelo telescópio espacial Hubble em agosto de 2023, tirando o título que Ícarus detinha desde abril de 2018. A luz de Earendel foi emitida 900 milhões de anos após o Big Bang e levou 12,9 bilhões de anos para chegar à Terra. Bilhões de anos e só fomos capazes de vê-la a pouco mais de 400 dias, contando com a tecnologia e um golpe de sorte. Foi um raro alinhamento das galáxias localizadas entre nós e Earendel que abriu essa pequena fresta no espaço-tempo. É quase tão incrível quanto inacreditável. São como constatar a fabulação de mundos fantasticamente reais. Cientificamente comprovados, mas absolutamente invisíveis à percepção humana de tempo e espaço.
São essas outras possibilidade de mundos que Ayla Tavares nos apresenta em Coisas que se movem lentas. Há na produção da artista carioca um fascínio pelo caráter concreto e mágico do tempo. Iniciado na sua relação com o maracatu rural – um berço da palavra que constrói matéria e da matéria que constrói palavra – ele ganha forma na cerâmica, tecnologia ancestral, que carrega o tempo como parte de sua matéria e tem nele parte constituinte de seu processo. O tempo se faz presente também no interesse pelos movimentos milenares que marcam a presença das coisas do mundo e da nossa capacidade (ou disponibilidade) de percebê-los. Como diz Chico tantas vezes, enquanto escrevo esse texto Não se afobe, não Que nada é pra já O amor [mundo] não tem pressa Ele pode esperar em silêncio Num fundo de armário [universo] Na posta-restante Milênios, milênios No ar.
Na série Matéria Matéria, as obras possuem tamanhos próximos da medida das palmas de suas mãos abertas. A argila é uma das matérias-primas mais antigas utilizadas pelo ser humano. Uma espécie de história oral contada pelas mãos. Um gesto arcaico, ancestral, que se aproxima do desenho e da escrita, retomado em cada uma das peças. Nelas há uma espécie de gramática de formas naturais ou orgânicas e seres estranhos, com dentes, escamas e pequenas garras. A essas formas se juntam desenhos em grafite em uma espécie de arqueologia de fenômenos naturais, históricos ou astronômicos quase inapreensíveis por nós. Esses corpos cerâmicos são como esfinges, que nos dão a ver novos mundos, com a coreografia das montanhas, a gota que leva anos para efetivamente pingar, o movimento das placas tectônicas, e a formação de um coral.
Outras histórias, essas do próprio processo artístico de Ayla Tavares, também são contadas. Em Escrituras 1 ela reúne amostras de todas as argilas com as quais a artista trabalhou nos últimos anos. Uma espécie de álbum de família ou um livro de memórias, que o público vai poder folhear. Essas são histórias para serem lidas pelas mãos, chamando nossa atenção para o interesse da artista pelo caráter performático na construção do objeto artístico. Em Uma forma sempre úmida é o ato contínuo que a constitui. Os anéis de cerâmica que vemos no aquário guardam lá dentro uma cabeça de touro – nome dado à primeira forma que se faz no primeiro gesto para modelar a argila. É como se cada cabeça de touro guardasse em si toda possibilidade de cerâmica que já existiu, que existe e que vai existir. A forma construída pela artista capta o fluxo de água do aquário, umidificando a cabeça de touro abrigada no interior. Assim ela é mantida viva, em estado de espera.
Em nossa primeira conversa sobre Coisas que se movem lentas, Ayla apontou que essa exposição seria uma espécie de celebração da sua relação com a cerâmica. Uma relação que começou por acaso, em 2017, quando a artista estava tentando resolver questões técnicas de um projeto de instalação que tinha em mente. Depois de vários testes frustrados, um amigo sugeriu que ela tentasse uma solução usando a cerâmica. O projeto acabou nunca saindo do papel, mas Ayla se interessou pelas possibilidades e desafios do uso da cerâmica e vem trabalhando a partir dela desde então. Mas há aqui outra celebração: da nossa presença no mundo, ou melhor, da maneira que escolhemos estar presente nele. Fico pensando que essas cerâmicas também são objetos-bilhetes-esfinges eternos, E quem sabe, então O Rio será Alguma cidade submersa (e) Os escafandristas virão e os encontrarão. O eco dessas antigas palavras, Fragmentos de cartas, poemas, mentiras, retratos, Vestígios de estranha civilização. O que dirão de nós as nossas histórias – que em outros tempos serão outras quimeras contadas por outros mestres?
Fernanda Lopes
Vistas da exposição
Obras