Renata Leoa: Terra de ninguém

Apresentação
Das sete pinturas inéditas que Renata Leoa apresenta na exposição Terra de ninguém, apenas uma revela ao público uma cena doméstica. Em Janela através da janela (2024), duas janelas dividem o espaço central da tela. A do lado direito, menor, aparentemente horizontal, a artista só nos permite ver parcialmente. Nela há uma cena quase abstrata. A parte inferior em amarelo claro contrasta com a parte superior construída em tons de azul e branco. É muito difícil olhar para essa configuração e não enxergar uma marinha. 
 
São muitas as referências da artista à história da arte, como a presença de pintura se confundindo com uma janela, mas antes delas veio outra. Leoa cresceu dividindo sua experiência de mundo no subúrbio do Rio de Janeiro visto pela janela de casa e pelos deslocamentos na cidade, com as paisagens que Antonio, seu pai, pintava e colocava nas paredes de casa. Muitas como essa revisitada pela artista em Janela através da janela, que dividiam espaço com as janelas de casa e que desde cedo já indicavam que era possível construir lugares. Hoje, as paisagens essencialmente urbanas da artista são muito mais construções do que simples registros. O que vemos em cada tela é resultado de um processo no qual Leoa mistura suas lembranças, como as paisagens de seu pai, com os registros (mentais e fotográficos) feitos por ela.
 
"Gosto muito de colocar coisas sobre coisas", comentou a artista em uma de nossas conversas sobre seus trabalhos. "Coisas" são todas as imagens que ela coleciona da cidade a partir do seu cotidiano. Não só aquele vivenciado agora, em sua vida adulta, mas também um cotidiano mais antigo, experimentado por ela desde cedo, em comunidades no Rio de Janeiro, onde nasceu e foi criada. São também as camadas de tinta e seus rastros de apagamento. Os acúmulos, que nas janelas são como roupas colocadas para secar mais rápido no sol, mas que em outros pontos da tela são volumes de tinta com presença física quase de um personagem na cena. Coisas também são as misturas de diferentes materiais, como tinta a óleo, giz pastel e pastel oleoso, além de cacos de vidro (em Caminho do Sentinela), pedaços de tinta seca que sobra no fundo dos recipientes que a artista usa (em Irajá/Brasil), e uma estrutura de ferro com lona (em Vende-se terrenos/lotes). Tudo isso sobre tela, que em alguns momentos é mesmo só ela, crua. Parafraseando o poeta Waly Salomão, a pintura é como ilha de edição.
 
Há ainda outro elemento que chama atenção na produção da artista: é raro ver nas pinturas de Leoa a presença humana. Pelo menos fisicamente. Ela se dá muito mais pelos rastros, por pequenos indícios como as luzes das casas acesas nas paisagens noturnas (em Esticando a noite e A falta que se torna tudo) ou os veículos estacionados nas ruas e garagens (em Encruza). Em Janela através da janela, por exemplo, no primeiro plano, do lado direto, vemos parte de uma mesa posta. Esse plano de cor, meio inclinado, se mistura com outro mais próximo (configurado como a parede da cena), e se mantém como mesa em grande parte pelos utensílios colocados sobre ela. Já em Vende-se terrenos/ lotes (2024), o uso como parte da pintura de uma estrutura de metal, dessas usadas como suporte para propaganda, traz para o espaço expositivo parte da dinâmica desses espaços. Toda propaganda é uma comunicação, feita por alguém e que se destina a alcançar outras pessoas. Aqui, a estrutura sustenta uma propaganda de venda de terrenos e lotes em um material danificado, dando a ver a outra parte do trabalho, atrás da lona.
 
Essa presença também se evidencia na própria maneira que a artista constrói suas paisagens. O uso da memória e de registros fotográficos, além da escala generosa, reforçam cenas finais que são vistas de dentro e não à distância. São becos, vielas, pontos cegos, cortes enviesados, espaços que parecem difíceis de atravessar. Uma dinâmica espacial revelada pela pesquisa da artista sobre a arquitetura e modos de construção dentro da favela. Esse espaço fragmentado, dinâmico, influencia a própria maneira como a pintura é construída, com diferentes técnicas de pincelada e uso de materiais variados, e que juntos vão reconstruindo esse território. São situações, mais do que paisagens, que a memória não consegue esclarecer e que a pintura escolhe não revelar. De certo modo é como se fossemos colocados no mesmo lugar que Leoa já esteve, mesmo sem nunca termos estado lá. 
 
Nesse sentido, seria possível dizer que todas as pinturas de Renata Leoa são como cenas domésticas porque mesmo as paisagens urbanas são reveladas a partir de um olhar muito pessoal, de quem sempre esteve ali. Ruas, janelas, esquinas, pessoas, objetos. Tudo tem uma história conhecida pela artista. É um território que tem dono e que releva a ironia presente no título escolhido para esta exposição. A expressão “terra de ninguém” é normalmente usada para se referir a um espaço não ocupado ou abandonado, mas esconde na maioria das vezes sua dimensão política e social, de um território e, mais que isso, uma narrativa em disputa. Podemos pensar essa expressão historicamente, considerando, por exemplo, a chegada dos portugueses ao Brasil, mas também as zonas periféricas das grandes cidades nos dias de hoje. As pinturas de Leoa são, de alguma maneira, o lugar de encontro dessas duas leituras.
 
Fernanda Lopes
 
 
Vistas da exposição
Obras