Marcelo Cidade: Pânico na Zona Sul

Apresentação
Durante as conversas sobre o projeto da exposição Pânico na Zona Sul, Marcelo Cidade comentou: "Jurei nunca mais usar esse material, mas estamos longe de não tratar mais desse assunto". O material em questão é o aglomerado têxtil – ou, como é mais conhecido, cobertor de doação –, feito a partir da reutilização de fibras sintéticas, obtidas no processamento de resíduos da indústria têxtil (restos de calças jeans, camisetas e bermudas) misturados a garrafas PET recicladas. Em pesquisa na internet, é possível encontrar anúncios que ressaltam que o produto serve para "cachorros, gatos, mendigos e fazer mudanças", em uma (eu espero) desconfortável equivalência entre "prevenir arranhões em móveis e utensílios", "dar conforto ao seu pet", "transportar cargas" (incluindo obras de arte) e "aquecer pessoas que dormem nas ruas".
 
Inevitável considerar essas especificações como parte da obra de Marcelo Cidade. Em mais de duas décadas de carreira, ele tem desenvolvido um corpo de trabalho interessado em explorar dinâmicas dos grandes centros urbanos, a partir de questões arquitetônicas e sociais, além de situações e materiais das ruas observados por ele enquanto caminha pela cidade de São Paulo, onde nasceu e vive até hoje. Violência urbana, desigualdade social e a tensão entre as esferas pública e privada são elementos recorrentes no repertório do artista e ecoam, por exemplo, na música dos Racionais MC´s, que dá nome à esta exposição. 
 
Desse universo fazem parte não só os cobertores (presentes na produção do artista desde 2009), mas também os portões metálicos com padrões geométricos, muito comuns em casas de São Paulo, que Cidade coleciona como imagens através de fotografias feitas ao longo dos anos. Na série Sociedade Anônima (2024) cinco desses portões são reproduzidos com tinta spray sobre os cobertores. Aqui, cobertores e portões são como uma película ou como elementos de controle, ao mesmo tempo sutil e ostensivo, que marcam a separação entre dentro e fora, espaço privado e espaço público, corpo individual e corpo coletivo. À distância, essas pinturas chamam atenção pela escala, grande o suficiente para deixar o espectador na dúvida se são reproduções em tamanho real ou não. A dureza das linhas brancas contrasta com a maleabilidade do material, preso diretamente na parede. Vistas mais de perto, nos fazem pensar no investimento físico do artista na realização dessas pinturas de grande dimensão e também perceber que o cinza que vemos de longe é na verdade constituído por diferentes texturas e cores de todos os materiais que foram prensados para fazer o tecido. 
 
Nem todos os portões são anônimos. O maior deles, reproduzido em uma pintura de quase dois metros de altura e cinco de comprimento, ficava na entrada da Casa Modernista, localizada na Rua Santa Cruz, no bairro da Vila Mariana, zona sul de São Paulo. Projetada pelo arquiteto ucraniano Gregori Warchavchik (1896-1972) em 1927 e construída em 1928, a residência (que hoje encontra-se em reforma para abrigar o Museu da Casa Brasileira) é considerada a primeira obra de arquitetura moderna realizada no Brasil. E aqui temos outro caminho de investigação recorrente na produção de Marcelo Cidade: o questionamento dos ideais modernistas no Brasil, especialmente seu interesse pela coletividade e sua crença no progresso econômico e social brasileiro, não só através de referência à arquitetura, mas também às artes visuais.
 
Em Pânico na Zona Sul, a série Sociedade Anônima divide o espaço expositivo com três obras da série Projeto (re)construtivo, reproduzindo sobre os cobertores, pinturas icônicas de três importantes artistas parte da herança construtiva brasileira: Judith Lauand (1922-2022), única mulher a ter feito parte oficialmente do Grupo Ruptura (SP, 1952) – um marco histórico do movimento construtivo no Brasil; Ivan Serpa (1923-1973), um dos precursores da abstração geométrica no Brasil e professor da maioria dos artistas integrantes de outro marco histórico desse momento: o Grupo Frente (RJ, 1954); e Alfredo Volpi (1896-1988), pintor ítalo-brasileiro da segunda geração do modernismo, cujo caráter construtivo de sua pintura a partir da simplificação de formas comuns, como as bandeiras das festas de São João, fez com que fosse considerado uma espécie de precursor da discussão abstrato-geométrica na arte brasileira.
 
Vistas em conjunto, as duas séries evidenciam como Marcelo Cidade sobrepõe em muitas de suas obras o espaço urbano e o sistema de arte. Ao levar elementos e procedimentos da rua para o espaço expositivo, ou, ao contrário, ao utilizar o espaço urbano como lugar para uma intervenção artística, é como se o artista apostasse no estranhamento e no desconforto que esses deslocamentos causam. Eles parecem chamar atenção para como esses dois espaços, idealmente marcados por certa ideia de liberdade, são fortemente regidos por sistemas, convenções, normas e ferramentas de controle e condicionamento.
 
O terceiro trabalho desta exposição, Hiper memória arquitetônica [galeria Athena] (2024) é um exemplo dessa dinâmica. Na fachada branca que abriga o espaço expositivo, chapas metálicas usadas pela construção civil desenham outra fachada, em referência a outra construção que ocupou aquele mesmo espaço antes. É como um fantasma, que habita os grandes centros urbanos, em constante mudança por conta da especulação imobiliária, mas habita também o sistema de arte, historicamente construído a partir de dinâmicas de poder e interesses fora do campo da própria arte.
 
Fernanda Lopes
Vistas da exposição
Obras