Raquel Versieux: Saudade e o que é possível fazer com as mãos

Apresentação

A palavra “saudade”, a primeira parte do título desta exposição individual de Raquel Versieux, pode ser relacionada de modo amplo à sua pesquisa. Com cerca de dez anos de percurso, a artista investiga a relação entre corpo humano e paisagem em diversas técnicas e operações de construção de imagens. A fotografia e a criação de objetos tridimensionais são alguns dos interesses mais frequentes em seus trabalhos.

É possível afirmar que sua pesquisa cria pequenas narrativas em torno da relação existencial entre aquilo que é humano e aquilo que pode ser apreendido (na perspectiva antropocêntrica) como um espaço da natureza. Essa relação, porém, não se dá de modo romântico como uma lamentação em torno de um encontro que um dia teria sido harmônico; muito pelo contrário, as imagens de Versieux mais parecem apontar para a impossibilidade de se apreender racionalmente esse namoro perverso entre pele e terra.

Distante de qualquer literalidade quanto ao modo como o espectador deve se relacionar com as imagens, sua pesquisa deseja que nosso olhar se debruce sobre suas proposições e perpetue o seu próprio estranhamento perante os muitos organismos dotados de vida que constituem esse mundo que nos foi ensinado como “nosso” e que tem como nome próprio essa palavra que designa o solo firme. Penso, portanto, que a saudade que pode brotar de sua produção artística não deve ser vista como uma unidade estanque, mas como uma coleção de pequenas saudades que são proporcionais tanto ao seu próprio trânsito por diversos lugares, quanto à falta que se sente logo no momento posterior à finalização de algo novo.

No caso desta exposição, estas saudades parecem estar relacionadas a dois espaços específicos. O primeiro deles é a região do Cariri, no estado do Ceará, área de forte sol e clima seco onde está localizada a cidade de Juazeiro do Norte, lugar em que a artista tem vivido nos últimos meses onde trabalha como professora universitária. O outro espaço é o México, país onde realizou uma residência recentemente na capital e que deixou marcas afetivas e antropológicas novas em seu olhar, mente e coração.

A partir desses sentimentos de falta, a artista explora diferentes linguagens em torno daquilo que “é possível fazer com as mãos”. Seu olhar lançado sobre a paisagem local se transformou em cliques fotográficos que exploram diferentes aspectos de seu entorno. O tom de amarelo dos maracujás caídos sobre um terreno encontrado ao acaso é acompanhado por cores mais frias de coqueiros que, para além de ainda estarem em pé, não apresentam grandes traços de vitalidade. Essas imagens se apresentam de modo mais icônico para o espectador e se diferem, por exemplo, da série de registros do Araripe – chapada que divide as fronteiras dos estados de Ceará, Pernambuco e Piauí – que a artista explorou diariamente de carro e capturou imagens tanto da passagem do tempo, quanto de detalhes de sua pesquisa direta com a terra. Um dos modos de se lidar com a saudade, portanto, é a fotografia e seu potencial de fazer lembrar um momento específico de uma experiência física.

Vivendo em um lugar em que as tradições ceramistas são extensas e onde os espaços abertos de paisagem possibilitam a exploração tanto do barro, quanto de rochas milenares, parece natural a opção de Raquel em também explorar esses elementos em seus novos trabalhos. Não podemos nos esquecer, porém, de sua constante utilização da terra e referência a aspectos geológicos do solo em outros de seus trabalhos em que a erosão é elemento central. Esse interesse na passagem do tempo – seja o pré-histórico, seja o da gestação de uma fruta – se faz presente nos objetos aqui mostrados e criam diálogos com suas fotografias.

A artista comprou cocos e carnaúbas, dividiu-os em duas partes e fez algumas incursões escultóricas com argila diretamente sobre elas. Os fragmentos se transformaram em moldes para a sua ação e retornaram à aparência de um círculo deformado semelhante a seu formato original. Uma vez queimadas no forno, essas peças carregam em sua superfície uma variedade de tonalidades e de texturas relativas ao espaço em que foram repousadas para secar – o chão do carro da artista. Do alto dos coqueiros para aquilo que pode ser encontrado nas montanhas ou mesmo abaixo de nossos pés, a artista apresenta também cinco objetos semelhantes a totens (e também a frágeis altares) que sustentam cinco pedras. A altura atingida por essas pedras chega à altura do coração da artista, esse órgão tão precioso quanto esses arenitos que, quando quebrados, escancaram seus cerca de noventa e seis milhões de anos. Se o coração é aquilo que permite com que sigamos vivos e atribuindo algum sentido ao mundo, esses fragmentos de rocha são os elementos que nos fazem constatar que nossas existências são apenas partículas de areia ao vento.

Mais do que o possível de ser feito com as mãos, essa exposição de Raquel Versieux apresenta aquilo que existencialmente se apresentou como necessário de ser criado nesse trânsito entre espaços. A saudade, essa palavra que só existe na língua portuguesa, pode ser vista tanto como um sentimento humano, como algo sentido pela própria natureza. Um coco que é despregado de seu coqueiro sente saudade daquele que foi o seu caule, assim como um resquício de pedra chora sua libertação de uma rocha maior. Enquanto isso, nós, os humanos, sentimos saudades dos lugares que recém-conhecemos e das pessoas que queremos conhecer mais.

Como uma vez a própria Raquel me disse e concordei, a saudade que sentimos pode se referir ao próprio presente e ao espaço da própria casa que habitamos. Em um momento histórico em que a experiência do tempo e do real se dá de modo tão fugidio, a nostalgia toma nossos corpos de modo constante. Sintamos, portanto, essa saudade junt_s e, na latência da indefinição do presente, sigamos a criar imagens e aguardar o movimento dos ventos sobre os coqueiros no futuro.

Raphael Fonseca

Vistas da exposição
Obras