Joana Cesar: A Ponte (Onde ele disse que eu não posso ir)
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Quase duas décadas depois do ocorrido que será narrado logo abaixo, Joana Cesar passou a fazer caminhadas diárias por um mesmo trajeto específico: a passagem de um quilômetro que se abre entre o Jardim Botânico e o Jockey Club, na cidade do Rio de Janeiro. A medida que o percurso era sacodido e esmiuçado à exaustão, o que passava despercebido por aqueles conduzidos pela urgência do cotidiano a atingia com tudo: o fluxo de pedestres e ciclistas na calçada espremida e fatiada por eventuais postes; os ônibus e carros vindo na direção oposta com suas lufadas incontornáveis; o vento, ou a falta dele; o movimento insólito repentino de algumas folhas; a forma como certas árvores crescem diferentemente das demais; ou um pedaço de rio desviado, debaixo de uma ponte discreta, com peixes que ficaram presos ali sabe-se lá desde quando.
É como se a soma desses pequenos fenômenos instalados naquela área estivesse ligada a uma fenda no conturbado urbano, algo capaz de provocar uma conjugação espiritual arrebatadora que, de repente, nos faz perceber além do arranjo material das coisas. Como numa hora instável, em que o suspense vive no interior de cada pedaço, naquele instante era possível sentir a energia concentrada entre a o gradil do parque e a grande parede do outro lado da rua.
Cada visita ao local significava ir ao encontro do acontecimento, do evento.
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Uma pessoa atravessando a rua capta a atenção de olhos cercados pelas janelas do automóvel mas em tudo comprometidos com os fenômenos de fora. A figura, que vestia-se com um chapéu feito de caixa de papelão, moletom roxo, calça jeans mijada dobrada no meio da canela, duas sandálias plataformas — um pé diferente do outro — e uma mochila com motivos infantis, se move com passos cadenciados, trazendo consigo uma série de aparatos e gambiarras. Logo avança diante dos carros, que são obrigados a frear subitamente. Enquanto suspendiam-se o barulho das engrenagens, surgia o ruído de um galão de plástico vazio sendo arrastando pelo asfalto por um corda amarrada ao pulso do homem.
A observadora era Joana, que salta do carro e se põe a segui-lo. Se ele a percebe, não se opõe a sua presença e segue adiante. Uma câmera é sacada para registrar suas ações. É descoberta sua identidade: José Carlos Telefônica Mundial. Em um dado momento, ele para. Levanta um pé do chão, depois o outro, e por fim o primeiro de novo. Saca da cintura um apetrecho que coloca ao lado do rosto. No meio da calçada, se vira para o asfalto e usa o galão como banco. É um espelho o que ele mantém perto dos olhos. É com isso que ele cessa o caminhar. É por ali que ele passa a ver o mundo e encarar o outro. O espelho é seu dispositivo de contemplação. O espelho é sua fresta.
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Durante mais de um ano, as caminhadas de Joana por aquela passagem viraram um destino. Era preciso experimentar o trajeto inúmeras vezes. Era preciso tatear com mais afinco tantas provocações. Era preciso se dar conta do tanto que se esconde e do tanto que se revela a qualquer momento, numa travessia qualquer. Era preciso ir e voltar. Era preciso andar sob o tino de muitos vetores e sentidos. Era preciso desenhar mapas do lugar através de uma cartografia particular, fotografar seus absurdos corriqueiros com o celular. Era preciso dar nomes as coisas que ainda não tinham nome. Era preciso sentir e entender mais daquela atmosfera obscura e sensual, que vinha à tona sempre que seu corpo percorria aquele espaço.
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Vasculhando seus arquivos digitais a artista encontra as fotos e os vídeos que fizera do rapaz na rua cerca de 17 anos atrás. No momento seguinte, se dá conta que o encontro se deu exatamente no lugar daquela passagem que agora era o objeto que mobilizava tanto seus afetos e seus esforços.
O remetente encontrava — em cheio — em si mesmo, tempos depois, um destinatário.
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Agora Joana reúne aqui trabalhos — expostos como fragmentos de um diário — que registram, comentam e também codificam o núcleo desse encontro. Um encontro maior fracionado em muitas partes, fases e dobras. Pois nele está o encontro da fisicalidade que compõe o trajeto com o esotérico imaterial que pode nos assaltar sem aviso quando estamos ali; o encontro com o homem que andava pela rua naquele dia do ano 2000; o encontro com os próprios registros que a artista fizera e deixara guardado por tantos anos; o encontro com o estranhamento que existe em qualquer detalhe; o encontro entre documento e ficção; e por fim, o encontro de sua subjetividade com o interlocutor que agora se vê diante de parte de seu repertório mais íntimo.
São colagens, fotografias e vídeos que existem por vias objetivas e outras menos claras. Mas em tudo fica marcada a autonomia da artista em suas andanças, e suas relações mais intensas com a imaginação possível, a fantasia extravagante, impregnada na rua. São ações que dão conta do momento em que o acontecimento, o evento, se abre para quem quiser o perceber.
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Se a ponte conecta, inevitavelmente, também se coloca como a medida da distância. Joana trafega pelas pontes — materiais, metafóricas ou mentais — com obstinação. Nesse processo de aventura e repetição, a artista parece querer dissecar tudo que lhe diga respeito, tanto o quanto lhe seja possível. Mas não para que possa entender integralmente cada aspecto do caminho, e sim para que possa vislumbrar a terrível — e implacável — dimensão do distanciamento. O hiato entre partida e chegada, entre ocorrência e percepção, entre código e decifração.
Germano Dushá