Matheus Rocha Pitta: The Fool's Year
Galeria Athena tem o prazer de apresentar The Fool's Year, de Matheus Rocha Pitta.
“Diante da imagem, estamos sempre diante do tempo.”
Georges Didi-Huberman
“The Fool’s Year”, de Matheus Rocha Pitta, traz, em um primeiro olhar, uma visualidade que nos é familiar. Estamos diante de uma sucessão de imagens de protestos reproduzidas em jornais. Ou seja, um repertório vasto de fotos que passaram a fazer parte do cotidiano mundial desde a chamada “Primavera árabe”, em dezembro de 2010. Logo em seguida, notamos que esse conjunto está organizado em doze sessões de maneira a formar um calendário no qual cada um dos 365 dias do ano é representado por um recorte de alguma manifestação ao redor do globo. Mas, em meio a essa sensação de familiaridade, encontra-se infiltrada uma sutil e importante subversão, qual seja, no lugar das mensagens contestatórias o artista introduziu a inscrição “1o de abril 2017”. Assim, estamos diante de um ano inteiro que se torna um único e mesmo dia. Um eterno primeiro de abril que, sabemos, significa o dia da mentira no Brasil, enquanto na Europa, a mesma data, com o mesmo sentido, foi batizada com a expressão “the fool’s day”, que pode ser traduzida como o dia do louco ou o dia do tolo.
Tendo realizado o trabalho que vemos hoje em Berlim, durante uma residência em 2016, o artista se deparou com um dado pouco conhecido sobre a origem da expressão que batiza a mostra. Em uma ida rápida na Wikipedia descobrimos que na Idade Média o dia de Ano Novo era celebrado em 25 de março na maioria das cidades europeias. Em algumas áreas da França, o Ano Novo era um feriado de uma semana que terminava em 1o de abril. Assim, alguns escritores sugerem que os “fools” do primeiro de abril surgiram porque aqueles que comemoravam no dia 1o de janeiro se divertiam com o fato de algumas pessoas celebrarem nessa data. Ou seja, os que celebravam em outra época eram considerados loucos, pois estariam indo contra o calendário oficial. Essa anedota, no limite, expõe a arbitrariedade contida nas convenções usadas para medir o tempo. De alguma maneira o calendário de Matheus é uma homenagem aos “fools” - todos os dias do ano são dias dos loucos, dos tolos. Um ano condensado, congelado em um único dia, ou um único dia inicial dilatado e diluído em um ano.
Para além da compressão do tempo, ou da cristalização dele, testemunhamos a retirada do conteúdo das mensagens dos brados de forma a sublinhar a linguagem característica dos protestos, assim como o repertório de gestos ali existente. Braços erguidos, multidões, diversos rostos que se tornam uma só massa uniforme. Um dos sentidos dessa estratégia já foi bem compreendido por Claudio Oliveira em texto sobre a obra “Ao Vencedor as Batatas”: “(...) através desse procedimento, Matheus restitui a dimensão de gesto dos gestos dos vencedores, ao levantar ou beijar a taça. Sem os troféus, com batatas, esses gestos aparecem deslocados de sua finalidade mais evidente: a ideia de que ao receber o troféu, ao erguê-lo e beijá-lo, eles comemoram o recebimento do prêmio, aquilo pelo que lutaram. Sem o troféu, esses gestos aparecem como isso que o filósofo italiano Giorgio Agamben chamou de meios sem fins, ou seja, os gestos são expostos em sua própria medialidade e não em sua finalidade”.
Se no trabalho citado essa estratégia de substituição colocava em cena batatas, temos agora a inscrição “1o abril 2017”. Esse ato que “interrompe” o tempo em um calendário encontra eco nas “Teses sobre o conceito de história” (1940), de Walter Benjamin. Em um texto sobre “The Fool’s Year”, Matheus cita parte da 15o tese do ensaio benjaminiano, na qual lemos: “Assim, os calendários não marcam o tempo do mesmo modo que os relógios. Eles são monumentos de uma consciência histórica da qual não parece mais haver na Europa, há cem anos, o mínimo vestígio. A revolução de julho registrou ainda um incidente em que essa consciência se manifestou. Terminado o primeiro dia de combate, verificou-se que em vários bairros de Paris, independentes uns dos outros e na mesma hora, foram disparados tiros contra os relógios localizados nas torres. Uma testemunha ocular, que talvez deva à rima a sua intuição profética, escreveu: "Qui le croirait! on dit qu’irrités contre l’heure De nouveaux Josués, au pied de chaque tour, Tiraient sur les cadrans pour arrêter le jour".
Está posta aqui, para Benjamin, a diferença entre a marcação de tempo cronológica-científica, própria do relógio, e aquela filosófica-histórica, ligada ao calendário. De um lado o tempo vazio e homogêneo da história contínua, do spleen de Baudelaire; do outro, o tempo com fisionomia, marcado pela ruptura, pela capacidade de parar o dia, parar os relógios, interromper o curso da história, quiçá, fazer uma revolução. Por isso, é preciso atirar nos ponteiros dos relógios a fim de interromper o fluxo das horas vazias. Ora, ao retirar as demandas políticas dos protestos e incluir um eterno primeiro de abril em seu calendário, Matheus busca justamente “parar o tempo”, estabelecer uma interrupção e, no mesmo lance, estancar uma certa narrativa. Se um dos maiores sintomas de nossa época é uma adesão automática ao tempo, o tempo do capital, o tempo do progresso, que sabe somente olhar para frente e, de preferência, de maneira veloz, ágil, produtiva, se concordamos que a dinâmica que impera e aliena é essa, então “The Fool’s Year” nos recorda que a chance de sairmos desse automatismo encontra-se em uma relação diversa com o tempo. Matheus instaura um desvio no fluxo temporal para, quem sabe, algo de novo, inaudito, sobrevir. Menos do que uma escolha diante da relação binária verdade x mentira, o “1º de abril 2017” estabelece uma zona de incerteza. Ou melhor, a ideia de verdade e de mentira no calendário está articulada à adesão ao tempo: louco (fool) seria aquele que não segue o seu tempo, que não se adequa à sua época.
Nesse ponto, a obra do artista nos remete, imediatamente, ao pensamento de dois autores, Friedrich Nietzsche e Giorgio Agamben. Em seu ensaio “O que é o contemporâneo”, Agamben parte das reflexões de Nietzsche nas suas “Considerações Intempestivas” a fim de desenhar um vínculo com a contemporaneidade intimamente ligado ao modo com que nos relacionamos com o tempo. “Nietzsche situa sua exigência de “atualidade”, a sua “contemporaneidade” em relação ao presente, numa desconexão e numa dissociação. Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e de apreender o seu tempo. A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela”.
Em diálogo com tal pensamento, “The Fool’s Year” evoca uma espécie de anacronismo produtivo. Produtivo pois essa interrupção não significa paralisia, se trata, antes, de não procurar por normas e imperativos, mesmo na desorientação angustiante que nos acossa incessantemente. Matheus parece dizer que a possibilidade de transformação reside em algo que antecede toda e qualquer mensagem em um cartaz. Não se trata de desqualificar as mensagens, tampouco de celebrar somente a forma do protesto., mas antes de sinalizar para o fluxo estrutural no qual isso ocorre. Curto-circuitar o automatismo - a dinâmica que reifica a todos diariamente - com o qual lidamos com o tempo: reside aí a chance de inaugurarmos uma outra relação com a tríade passado, presente e futuro.
Já a montagem da mostra na Galeria Athena Contemporânea busca uma certa desautomatização do olhar. Cada mês do calendário está emoldurado, com os recortes colados no vidro, formando doze quadros que não deixam de ser, cada um, pequenas vitrines. A galeria, por sua vez, está situada dentro de um shopping e as paredes nas quais “The Fool’s Year” está exibido eram, até um passado recente, uma grande vitrine. Entramos no espaço expositivo e a galeria se encontra vazia. Somente quando viramos para trás é que nos deparamos com o trabalho. A expectativa comum de ver as paredes principais do espaço ocupadas é frustrada. De saída, esse gesto simples convoca uma leitura mais atenta, a necessidade de enxergar duas vezes. Corpo e percepção buscam se adaptar a essa sutil torção. Há, ainda, um vínculo com o lado de fora, como se o trabalho pertencesse, em realidade, à rua. Estamos na galeria, mas olhando, metaforicamente, para o que se passa no exterior.
Esse olhar ativo se volta, então, para os doze meses do ano que trazem uma multidão anônima carregando nas mãos, de braços erguidos, o tempo inadequado, o tempo dos loucos. Uma procissão planetária na qual todos estão articulados, pura e simplesmente, por uma data, como se o tempo parasse e pudesse ser exibido em cada cartaz. Matheus instaura aqui uma temporalidade intensiva, tal como propunha Walter Benjamin. É através de um tempo não linear, no qual presente e passado podem convergir fora da continuidade progressiva, que o autor concebe a sua teoria da história. A preocupação benjaminiana estava voltada para a interrupção do ciclo fantasmagórico de repetição do mesmo. Este é sem dúvida um problema central e que nas “Teses sobre o conceito de história” aparece sob a forma de uma urgência: a de livrar o tempo de uma concepção linear que acaba por sustentar uma história que não passa da canonização do ponto de vista dos vencedores. Segundo Benjamin, a história deve ser objeto de uma construção. O tempo linear impede essa construção ao trabalhar com um passado imobilizado e um presente anulado nas suas possibilidades ativas. “A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo “homogêneo e vazio”, mas um tempo saturado de “agoras”.
Assim, a repetição do mesmo “1 de abril de 2017” constitui-se em um desajuste intencional com o tempo cronológico filiado aos valores dominantes de produtividade, de desenvolvimento, de alvo, de performance, de velocidade, de eficácia, de execução, de gozo – o tempo dos “vencedores”. O artista nos entrega um ano saturado de “agoras” onde cada um clama por uma interrupção no ciclo reificante que instaura o que conhecemos como “vida nua”. Estamos diante de uma vitória do calendário sobre o relógio.
No limite, “The Fool’s Year” surge como mais uma etapa dentro de um programa poético desenvolvido com altas doses de coerência e experimentação ao longo dos últimos quinze anos. Comparecem aqui os elementos centrais de uma pesquisa que mobiliza as urgências do presente, mas sem transformá-las em espécies de commodity. Pois isso seria replicar – na esfera da arte - um modo de lidar com a realidade política tal e qual faz a sociedade em seus nichos mais cooptados pelo capital. Ao contrário, Matheus Rocha Pitta escova o presente à contrapelo, habitando-o inteiramente, mas em um descompasso constante, pois sabe, seguindo Agamben, que “ser contemporâneo significa ser pontual a um compromisso ao qual se pode apenas faltar”.
Luisa Duarte