Gustavo Prado — Vigília
Em Vigília, esse gesto adentra agora ao espaço expositivo. A mudança do espaço público para a galeria altera profundamente a relação com os visitantes e amplia a densidade poética da obra. Dois elementos são adicionados à instalação: o círculo, presente nas portas de correr em alumínio e num espelho dividido ao meio que se encontra suspenso e as luzes. As paredes circundantes deixam de ser neutras e passam a integrar o trabalho. As sombras, os reflexos e os pontos luminosos projetados nelas transformam o espaço expositivo em extensão da obra, contaminando a arquitetura da galeria e expondo o jogo entre dentro e fora, luz e opacidade. O visitante encontra-se, assim, imerso num território onde nada é fixo: as superfícies deslocam-se, as imagens não coincidem, o corpo é devolvido sempre em pedaços. Prado chama a peça suspensa de espelho desobediente, superfícies que não devolvem identidades inteiras, mas multiplicam fragmentos, repartem o espaço. O que parecia familiar transforma-se em ambiente estranho, em que a percepção já não se pode fiar na clareza da imagem. A vigília experienciada neste ambiente aproxima-se mais da variante hipnagógica, que se situa entre o sono e o despertar, num estado em que o corpo relaxa, mas os sentidos permanecem alerta, recolhendo fragmentos de imagens e sons. É o instante em que o real se insinua em pedaços, nunca inteiro, sempre fugidio.
Vigília é simultaneamente poética e política. Poética porque suspende o tempo e as percepções espacial e corporal e reencanta materiais banais, devolvendo ao olhar a estranheza do que parecia trivial. Política porque revela como os dispositivos arquitetônicos moldam o desejo, a visibilidade e a maneira como nos engajamos com o espaço. A instalação devolve ao público a sensação de estar num estado liminar, quase a adormecer mas forçado a permanecer desperto, atento ao que se passa em redor. Nesse espaço fragmentado e instável, o real insiste e resiste como lampejo, como sombra, como fragmento. Nesse estado entre alerta e devaneio, entre sombra e reflexo, Vigília recorda-nos que habitar o espaço, seja a cidade, a galeria ou o próprio corpo, é sempre um exercício de resistência e re-existência, de permanecer desperto diante de um real que nunca se mostra inteiro, mas que, mesmo em fragmentos, continua a exigir de nós atenção, desejo e invenção.
Cristiana Tejo