Overview
A vigília é um estado de atenção constante que complementa o sono no ciclo circadiano dos seres humanos. Em termos sociais, essa condição pode ser uma metáfora do Brasil contemporâneo, uma sociedade que se mantém permanentemente desperta, obrigada a vigiar a si própria e o espaço público que habita. A experiência urbana brasileira, marcada pela desigualdade e pela insegurança, raramente oferece repouso, exigindo do corpo e dos sentidos uma atenção contínua, uma vigília social. É nesse campo que se inscreve o presente trabalho de Gustavo Prado, que descende da investigação iniciada em O Morador, instalação pública da Bienal do Mercosul. Naquela ocasião, 27 portas de alumínio revestidas com película espelhada compunham um labirinto em constante transformação, onde a negociação entre passagens abertas e bloqueadas revelava a precariedade e a transitoriedade da experiência urbana. As portas, presentes em casas populares e em residências de classe alta, constituem um mínimo múltiplo comum da arquitetura brasileira, ou seja, um módulo partilhado que transcende diferenças de classe, funcionando como uma base construtiva disseminada. Já as superfícies espelhadas remetem à arquitetura financeira dos grandes centros, especialmente São Paulo, onde arranha-céus de vidro esfumado e refletor exibem poder enquanto dissimulam, sob o mito da transparência, relações de opacidade e exclusão. A instalação inscrevia-se na cidade como exercício de convívio e fricção entre corpos, reflexos, movimentos e fluxos da paisagem.

Em Vigília, esse gesto adentra agora ao espaço expositivo. A mudança do espaço público para a galeria altera profundamente a relação com os visitantes e amplia a densidade poética da obra. Dois elementos são adicionados à instalação: o círculo, presente nas portas de correr em alumínio e num espelho dividido ao meio que se encontra suspenso e as luzes. As paredes circundantes deixam de ser neutras e passam a integrar o trabalho. As sombras, os reflexos e os pontos luminosos projetados nelas transformam o espaço expositivo em extensão da obra, contaminando a arquitetura da galeria e expondo o jogo entre dentro e fora, luz e opacidade. O visitante encontra-se, assim, imerso num território onde nada é fixo: as superfícies deslocam-se, as imagens não coincidem, o corpo é devolvido sempre em pedaços. Prado chama a peça suspensa de espelho desobediente, superfícies que não devolvem identidades inteiras, mas multiplicam fragmentos, repartem o espaço. O que parecia familiar transforma-se em ambiente estranho, em que a percepção já não se pode fiar na clareza da imagem. A vigília experienciada neste ambiente aproxima-se mais da variante hipnagógica, que se situa entre o sono e o despertar, num estado em que o corpo relaxa, mas os sentidos permanecem alerta, recolhendo fragmentos de imagens e sons. É o instante em que o real se insinua em pedaços, nunca inteiro, sempre fugidio.

Vigília é simultaneamente poética e política. Poética porque suspende o tempo e as percepções espacial e corporal e reencanta materiais banais, devolvendo ao olhar a estranheza do que parecia trivial. Política porque revela como os dispositivos arquitetônicos moldam o desejo, a visibilidade e a maneira como nos engajamos com o espaço. A instalação devolve ao público a sensação de estar num estado liminar, quase a adormecer mas forçado a permanecer desperto, atento ao que se passa em redor. Nesse espaço fragmentado e instável, o real insiste e resiste como lampejo, como sombra, como fragmento. Nesse estado entre alerta e devaneio, entre sombra e reflexo, Vigília recorda-nos que habitar o espaço, seja a cidade, a galeria ou o próprio corpo, é sempre um exercício de resistência e re-existência, de permanecer desperto diante de um real que nunca se mostra inteiro, mas que, mesmo em fragmentos, continua a exigir de nós atenção, desejo e invenção.

Cristiana Tejo
 
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