Não é verdade que eu não exista
Para um jovem artista que surge no Brasil durante a década de 1960, há muitas formas de lidar com o seu tempo - seja do ponto de vista da arte, seja do ponto de vista da história. A efervescência estética que já vinha desde a década anterior através dos movimentos construtivistas no Rio de Janeiro e em São Paulo, dava frutos durante o pior período para a liberdade criativa. Em meio ao surgimento de novos nomes que ampliavam as informações da arte no mundo e no país, tínhamos também os primeiros momentos de uma ditadura civil-militar que se estenderia por quase vinte anos.
Angelo de Aquino surge justamente nesse momento simultâneo de expansão e repressão. Participa, ainda com vinte anos, de um marco da história da arte brasileira – a famosa mostra Opinião 65, realizada no MAM-RJ. Sua verve abstrato-geométrica e suas cores quentes apontam um artista em formação que usufruiu da visualidade concreta e neoconcreta, ao mesmo tempo em que é possível percebermos seu olhar já em contato com os trabalhos da pop art e das novas figurações ao redor do mundo. Além disso, Angelo faz parte de uma geração que, com forte pendor gráfico, via o design no Rio de Janeiro se tornar um saber muito próximo a partir da criação da Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI).
Era nesse cenário que sua perspectiva estética buscou se ajustar rapidamente ao momento político. Para aqueles que precisavam da experimentação e da crítica como ferramentas de trabalho, foi crucial lidar com o impacto do progressivo fechamento da sociedade e do país como um todo. Tolhidos de tais ferramentas, jovens como Angelo de Aquino precisaram inventar meios para seguirem ativos com sua arte.
Em situações de repressão das ideias e dos comportamentos, aqueles que eram visados por tal estado das coisas acabaram por tomar alguns caminhos marcantes dentre a geração. Dentre muitos, um deles é um esvaziamento radical do eu, do nome que assina, em prol de um deslocamento do ego para um coletivo anônimo. Um outro caminho é entender que a uma das formas de sobrevivência pessoal e criativa é o exílio. Nesta exposição, vemos que Angelo de Aquino exerceu os dois, simultaneamente.
No primeiro deles, o esvaziamento de um eu autoral e existencial, vemos um artista cuja obra faz um diálogo com a arte mundial de seu tempo. Se hoje a afirmação de identidades pessoais é marcada no corpo e nas vozes que representam comunidades políticas, no período em que a maioria das obras desta exposição foram feitas, a perspectiva era inversa. No convite ao comunitário e à participação, a ideia de um apagamento da identidade era diretamente ligada ao inimigo político comum. Aquino era contemporâneo da arte conceitual, da expansão das novas mídias como novo suporte artístico e da “desmaterialização do objeto da arte”. Nesse espaço-tempo, ele criou uma série de obras em que tanto apagou rostos quanto transformou o eu que enuncia títulos de obras em um ente coletivo.
Em um primeiro momento, vemos suas Transformações, série de fotografias em que ele apaga seu rosto com sobreposições de camadas e materiais que bloqueiam o acesso ao que se coloca frente a frente com a câmera. Temos também o “projeto para mudança de identidade” (Project for a change of identity), em que Angelo se torna Emanuelle. Na segunda metade dos anos de 1970, tal ímpeto prossegue com uma série de pinturas gráficas que afirma o lugar desse “Eu”, ainda em deslocamento e desaparição: “Eu e um mistério”, “Eu, uma ilusão” ou “Eu através de um vazio” constatam o processo tênue entre o apagamento desse ego e a transformação do mesmo em mancha de cor. O “eu” dessas telas se afirma como um azul escuro que assume formas moventes dentre planos e grids.
Já o exílio foi também um dos caminhos que Angelo trilhou, viajando para Milão e residindo na cidade entre 1970 e 1972. Era um período em que artistas de sua geração se encontravam fora do país, como Hélio Oiticica e Rubens Gerchman em Nova Iorque ou Antonio Dias e Iole de Freitas também em Milão. Nesse período, curto, porém profícuo, Aquino mergulha na ampliação de suportes, sendo um dos pioneiros da chamada arte postal, além de experimentar trabalhos com fotografia, vídeo, carimbos, xerox e livro de artista. A criação de uma “empresa” – Angelo de Aquino Self Promotion inc – dava o tom desse viés provocador e, ao mesmo tempo, questionador do papel da arte e do artista no contexto do mercado de arte.
Esse duplo caminho, entre o apagamento do ego e o exílio, fez de Angelo de Aquino um artista contemporâneo de seu tempo e, simultaneamente, singular em suas escolhas. Afinal, mesmo com a volta ao Brasil e o retorno paulatino à pintura, sua obra seguiu tensionando o legado do abstracionismo nacional da década de 1950 com as investigações sobre o papel do artista enquanto agente político no campo da arte brasileira. Apagar o rosto, rasurar o nome e fazer de um eu pessoal uma espécie de eu coletivo, eram ações que davam consistência a uma ética criada pelo artista. Em meio à censura e aos dispositivos de silenciamento promovidos pelo regime civil-militar, tais trabalhos mostram saídas maduras em meio a exercícios ora irônicos, ora perturbadores.
A escolha do título esta exposição, “Não é verdade que eu não exista”, título de um trabalho de 1970, é, portanto, a síntese do que este texto aponta: um artista que, em um período de desaparecimentos e silêncios, se afirma em negativo. Apesar do deslocamento radical do eu autoral, do apagamento do rosto, da transformação dos suportes em direção ao efêmero e irônico, o artista existe. O exílio, outra camada de “não existência” é a senha para que outro Angelo surja e se refaça em estado permanente de invenção de si e do mundo. Que esta exposição consiga atualizar e ampliar o contato do público com a obra de um artista cuja trajetória vai muito além do que se conhece e ainda guarda uma força política e existencial fundamental para pensarmos a cena brasileira contemporânea.