Eduardo Baltazar: noitinha
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Overview
Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber.
Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar.
Ea canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
Guimarães Rosa
A palavra “noitinha” carrega um sentido, de certa forma, intervalar. Talvez o que mais ressoe, diante do uso desse nome para esta exposição individual, seja o seu sentido vernacular. “Noitinha” ecoa a partir de um lugar coloquial e corriqueiro, e, por isso, também afetivo e quente. Esse entremeio, no passar dos dias, está relacionado a específicas disposições de luz e ao efeito das cores no céu e no horizonte.
Vernacular também é a atmosfera do conto que dá título à série de pinturas aqui dispostas. "Terceira margem" é parte do título de um conto misterioso de Guimarães Rosa, em que um pai, no interior do Brasil, abandona tudo para viver isolado no meio do rio, em uma canoa construída por ele próprio. A narrativa é permeada pela descrição do narrador, o filho, que atravessa constantemente a escolha do pai – figura que, em meio a essa atitude surpreendente, se hibridiza, tornando-se meio bicho, meio gente.
Na série de Eduardo Baltazar, composta majoritariamente por pinturas em pequeno formato, a prática não se baseia na observação no sentido clássico, mas de um trabalho que utiliza a matéria da memória. A densidade mnemônica torna-se, em sua produção, uma tentativa não só de fazer a memória reluzir, mas de situar a lembrança e o pensamento em um espaço permeado por consciente e inconsciente, luz e sombra.
Se tomarmos a memória como algo próximo ao funcionamento do registro fotográfico – se as imagens que permeiam nossas vidas aparecem como um filme – o que resta são frames, enquanto uma espécie de "todo" permanece pairando como algo intransponível para a imagem. O que se descola desse todo da memória, avassalador (seria insuportável lembrar-se de todos os momentos, dos mais alegres aos mais tristes), aqui se faz imagem, através da inscrição em pintura. Essa é uma tarefa interminável: a memória produz uma corrente associativa, em que uma coisa se liga a outra indefinidamente.
É aí que Eduardo parece desejar parar, criando pontos de pausa, como se perguntasse: “O que posso ver quando fecho os olhos? Quanto medito? Quando tento puxar o fio volátil da memória?”. O artista me fala de sua infância nas praias de Cabo Frio. Em sua série, a paisagem não é um objeto, tampouco um mero enunciado cultural. A paisagem é o mundo – o próprio mundo de imagens que Eduardo Baltazar habitou e habita, a partir do qual ele, assim como todos nós, recorta seus pontos de vista. No entanto, “Noitinha” transforma essas memórias em algo mais plano e geral por meio da pintura, transpondo para a composição da imagem algo que aparenta uma contração visual.
A pergunta que ressoa: como ser impactado pelo que se vê? Olhar para algo, muitas vezes, é alterar alguma coisa, é abrir o campo perceptivo – um desvelamento, ainda que muito sutil. Talvez esse seja o efeito das pinturas aqui apresentadas. Ver uma paisagem pode ser, ainda que temporariamente e de forma imaginativa, habitá-la. Nesse sentido, ver não é apenas depreender um significado unificado ou identificar algo que está presente na imagem. Me parece razoável dizer que as pinturas de Baltazar não são melancólicas ou alegres, mas prenhes do que é próprio ao vetor mnemônico – algo mais complexo e misturado, compondo distâncias e aproximações. Seus jogos de cores não buscam criar ilusões frente às paisagens nem se limitam a alusões, mas compõem uma cadência que convoca o olhar.
O tempo passa, os dias se tornam noites, as noitinhas se instalam – a paisagem muda, não somos espectadores estáticos, somos sujeitos ativos e profundamente rítmicos. Não há algo para o qual simplesmente olhamos, quando Eduardo Baltazar pinta, ele cria uma mediação. Pintar é um dar a ver algo, de certa forma, ainda que o artista não pinte propriamente algo que está sendo observado.
A disposição expositiva proporciona uma experiência singular em relação a essas pinturas. Elas possuem um ritmo; a relação do olhar com o conjunto permite uma entrada específica. As obras são marcadas por transições – de dias, luzes, contrações e expansões. “Noitinha” carrega em si a ideia de algo diminuto, como se a pintura pudesse ser grande, mas se contraísse em pequenos formatos. As composições seguem uma estrutura cadenciada: uma faixa horizontal abaixo, a paisagem acima, e um ponto de luz ao centro, guiando o olhar. Aqui, formas de barcos e jangadas aparecem, algumas copas de árvores e nuvens – são formas que, por vezes, ganham graus de abstração. O pai desaparece no conto de Guimarães Rosa, mas há um lastro, a relação com o filho, os mantimentos enviados, a expectativa do leitor de que eventualmente o narrador tomará o lugar do pai.
As noitinhas trazem com elas a sensação de mistério diante da luz escura. O que irá sumir, sucumbir? As imagens aqui percebidas são como restos espectrais. Há, ao mesmo tempo, uma ideia de simetria em meio ao ritmo percebido nas construções de Eduardo Baltazar. Imagens simétricas que remetem a uma ideia de síntese ou meio (o ponto de luz), onde é possível pausar e silenciar. Não se trata de um silêncio inativo ou deliberado, mas sim da construção de um espaço meditativo onde muito acontece, onde o entorno ressoa, mas a recepção torna-se diferente.
Meditar sobre as possibilidades, criar uma relação de maior resiliência com o que chega da memória, com o que virá. Não seria isso a ansiedade – a dificuldade de não se antecipar, imaginando o que as coisas serão? O controle é uma ilusão, guiada pela ideia de que nossos arquivos pessoais são plenamente factíveis. A lembrança é sempre lacunar, e o conjunto de pinturas apresentado por Eduardo Baltazar inspira a tomar a imagem, nesses estados, como algo que se faz de modo sinuoso. A meditação não exclui os sons ao redor, mas altera a própria posição de uma escuta desde dentro.
Há quem diagnostique uma estafa contemporânea, advinda do excesso de imagens e informações. Contudo, o olhar contemporâneo parece embotado, letárgico. As pinturas encontradas em “Noitinha”, nesse sentido, inspiram uma deriva mais complexa e ativa. Se a paisagem, um dia, desejou um suplemento de sentido, aqui ela se desprende. A observação minuciosa do mundo dito "natural" dá lugar aos fragmentos auráticos da memória, como se um halo se abrisse sobre a capacidade de imaginar – um estado de convocação de um passado que não chega por vias arqueológicas, mas pela reconstrução das luzes e formas sobressaídas.
São imagens de formas outrora avistadas nas praias por onde o artista passou, onde criou possibilidades de afeto e de ver as formas de modo diferente, de ser afetado pelo que se vê. Na década de 1960, a noção de caminhada e percurso na arte, enquanto elementos constituintes do motivo, pressupunha um envolvimento físico e corporal com aquilo que se denomina “natureza”, desempenhando certo papel de desvelamento. A pintura, em sua qualidade mais ontológica, nos mostra as coisas do mundo. A caminhada permite o passeio, inclusive dos nossos distintos pontos de vista.
Eduardo Baltazar transpõe temporalidades, reflete o mundo visível, agora separado das reminiscências de infância, aproximando-o do olho nu. Os graus de abstração das figuras aparecem e simbolicamente remontam ao fato de que a memória também tem um componente inconsciente e lacunar. Lembrar é somente possível no atualizar.
A luz natural informa as cores e os pontos de luz centrais – cores que entram em relação. Aqui, a cor, para Eduardo Baltazar, é como uma descoberta, uma prática, uma relação diferencial da qual todo o resto depende. Se há expansão e contração, luz e sombra, claro e escuro, figura e fundo – há tudo. E resta o silêncio, pairando como a ausência de qualquer narratividade a priori, uma serenidade apreendida das praias e das noitinhas, que afeta o espectador e o instiga a olhar para dentro de si. A memória, aqui, não chega apenas como flashes dispersos, mas impregnada de mundo, na medida em que a paisagem é mesmo o mundo.
Essa certa pertinência formal nas pinturas de Baltazar cria uma vibração entre o vazio e o cheio, entre o próximo e o distante. Não inspiram e nem buscam criar ilusões; insistem em preencher-nos com as trivialidades do mundo, conformando sua paisagem. Retornando ao conto, na ribanceira formada em meio ao mato, um homem sai a remar, sem promessa de volta. A forma da canoa pode ser um jacaré, diz o narrador. Há uma conformação – entre seres e coisas, paisagens e lugares, bichos e seres. Perder-se por aí é se encontrar. Fixemos, então, no ponto de luz que se avista no horizonte.
Daniela Avellar
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